BOM NATAL
FELIZ ANO NOVO
O frio do norte alentejano e este tempo de pausa convida-me a ficar em casa, com os meus, com as minhas memórias, com o espaço a que pertenço, com os livros. Por isto, estarei ausente das lides bloguísticas até ao início de 2007.
Gostaria muito de desejar a todos quantos me lêem um tempo de pausa igualmente pacífico, cheio de disponibilidade interior para quantos nos rodeiam e para a contemplação do mistério da vida e da sua multiplicação. Sei, no entanto, que nem todos têm esta possibilidade. Desejo assim, do fundo do coração (o chavão corresponde, desta vez, a um sentimento sincero...), que todos passem um Natal cheio de paz e de felicidade.
Mesmo que, por qualquer motivo, a alegria não vos encontre, lembrem sempre as máximas de S. Paulo e de Jacques Prévert:
"Podemos ser derrubados, mas nunca abatidos."
"Tudo estará perdido, excepto a felicidade".
Nicolau Saião
QUINTAL DE NATAL
(...) E, instado pelo sr. Chefe de Brigada, o acusado disse: “Sim, era na altura do Natal que lá se viam as laranjeiras, os limoeiros e as tangerineiras, no meio de outras árvores de fruto e de algumas poucas oliveiras. Aquilo esplendia sob a doçura do silente sol de Dezembro. E a mãe recomendava sempre à mana: 'Vê lá não caias da escada...!', referindo-se ao artefacto de madeira mediante o qual se chegava aos mais altos ramos. Levavam-se sempre dois saquitéis - e um deles acolhia os limões para que a sua casca cheirosa, ralada, polvilhasse a fina massa das filhozes e azevias... E o pai levara da cidade - primeiro pela estrada de terra batida e depois, passado o portão, pela vereda entre os pinheiros que ao pé dos cortiços de abelhas, sob a azinheira, atravessava o ribeiro acrescentado pela água das chuvas - em dois sacos de linho granjeal as coisas raras e os modestos presentes que se transformavam em segredos de alto preço na hora aprazada.
E interrompeu o Sr. Procurador e, à sua interpelação, respondeu o acusado:" Era a avó, a comadre Maria Serenina, a prima Rosa, a vizinha Generosa, além dos mais próximos é claro. Reuníamo-nos na sala grande, havia a mesa de castanho, a lareira...O quarto ao cimo da escada misteriosa, com a janela de onde ele perscrutava os medos e as maravilhas".
E a mais uma pergunta, que pareceu atrapalhá-lo, do sr. Chefe de Brigada, o detido declarou: “Cantávamos, sim, confesso que cantávamos: loas ao ‘deus-menino’, rimances ingénuos onde se falava nas consoadas distantes, modas aprendidas através dos tempos. E sentíamo-nos felizes - e lá fora, enquanto nós ceávamos seroando na santa paz das horas perdidas, lá fora as árvores descansavam sob a luz da lua e do firmamento recamado.”Ao arguido foi levantado o competente processo por delito poético-natalício de recordação(…).
QUINTAL DE NATAL
(...) E, instado pelo sr. Chefe de Brigada, o acusado disse: “Sim, era na altura do Natal que lá se viam as laranjeiras, os limoeiros e as tangerineiras, no meio de outras árvores de fruto e de algumas poucas oliveiras. Aquilo esplendia sob a doçura do silente sol de Dezembro. E a mãe recomendava sempre à mana: 'Vê lá não caias da escada...!', referindo-se ao artefacto de madeira mediante o qual se chegava aos mais altos ramos. Levavam-se sempre dois saquitéis - e um deles acolhia os limões para que a sua casca cheirosa, ralada, polvilhasse a fina massa das filhozes e azevias... E o pai levara da cidade - primeiro pela estrada de terra batida e depois, passado o portão, pela vereda entre os pinheiros que ao pé dos cortiços de abelhas, sob a azinheira, atravessava o ribeiro acrescentado pela água das chuvas - em dois sacos de linho granjeal as coisas raras e os modestos presentes que se transformavam em segredos de alto preço na hora aprazada.
E interrompeu o Sr. Procurador e, à sua interpelação, respondeu o acusado:" Era a avó, a comadre Maria Serenina, a prima Rosa, a vizinha Generosa, além dos mais próximos é claro. Reuníamo-nos na sala grande, havia a mesa de castanho, a lareira...O quarto ao cimo da escada misteriosa, com a janela de onde ele perscrutava os medos e as maravilhas".
E a mais uma pergunta, que pareceu atrapalhá-lo, do sr. Chefe de Brigada, o detido declarou: “Cantávamos, sim, confesso que cantávamos: loas ao ‘deus-menino’, rimances ingénuos onde se falava nas consoadas distantes, modas aprendidas através dos tempos. E sentíamo-nos felizes - e lá fora, enquanto nós ceávamos seroando na santa paz das horas perdidas, lá fora as árvores descansavam sob a luz da lua e do firmamento recamado.”Ao arguido foi levantado o competente processo por delito poético-natalício de recordação(…).
José do Carmo Francisco
Natal Feliz com lágrimas
Não se trata de andar à volta do livro magnífico do João de Melo, um belo romance e um dos mais felizes e bem achados títulos que conheço. E conheço muitos pois escrevo sobre livros em jornais e revistas desde 1978. Mas para mim o Natal é a época do ano mais complicada de gerir, de sentir e de viver. Enquanto somos novos o Natal é muito bonito pois tudo é de graça. Nada pagamos nem pelos beijos nem pelas lágrimas mas com a idade tudo se complica. Começa a faltar gente na lareira: o avô, a avó, a mãe. E começam as distâncias: uma filha que emigrou à procura de melhores condições de vida num país estrangeiro. Não pode vir porque passa os Natal com os sogros, gente idosa e doente. Tem que ser assim. E começam as angústias. Um filho recém-licenciado em História e autor de uma tese de mestrado não consegue colocação compatível. Nem incompatível. Uma filha está no quarto ano de um curso de arquitectura paisagista e já começa a pensar que não tem saída. Talvez emigrem os dois. Eu próprio estou desempregado desde 2 de Novembro e a minha mulher desde 23 de Setembro. Tudo isto acontece 32 anos depois do 25 de Abril que eu modestamente ajudei a concluir na Pontinha e cujo registo está na minha caderneta militar. Por isso a angústia é maior. Por isso este título de crónica tem toda a justificação. Natal Feliz com lágrimas pois ainda há encontro, ainda há partilha e ainda há ternura em circulação mas já não estamos todos à mesa. E a única resposta positiva é, tem que ser, só pode ser, o sorriso ingénuo e confiante do meu neto Thomas Francisco Sutherland. Ele pode ser o rosto desta aposta teimosa do amor contra a angústia. Da alegria possível contra a paisagem desolada do egoísmo e da solidão.
A CARNE E OS OSSOS
Há gente séria e bem intencionada no Governo. Apesar disto, o propósito da actual gerência parece ser acabar com a presença do Estado na Saúde, nos Serviços, na Educação e noutros domínios - ou, então, reduzi-la a mínimos inexpressivos, que deixam de servir para o estabelecimento de uma justiça social básica, mas para uma oferta pífia de caridadezinha laica. Desossar o esqueleto público, oferecer a carne aos que já têm o frigorífico cheio, lançar os ossos a uma matilha de pobres esfomeados...
Não há volta a dar à conversa. Passámos a viver sob a lei da selva, uma lei da selva que nos menoriza e irresponsabiliza, reduzidos à condição de bichos a viver num canil. Porque, não nos esqueçamos, quem come a carne não precisa de roer os ossos... E quem a come, para mal dos nossos pecados, não são os mais competentes ou os mais fortes, mas apenas aqueles que sabem lamber a mão do dono ou lhe oferecem (como gratificação antecipada, vulgo "suborno") o melhor coelho ou a mais gorda galinhola que conseguiram na caçada.
Há gente séria e bem intencionada no Governo. Apesar disto, o propósito da actual gerência parece ser acabar com a presença do Estado na Saúde, nos Serviços, na Educação e noutros domínios - ou, então, reduzi-la a mínimos inexpressivos, que deixam de servir para o estabelecimento de uma justiça social básica, mas para uma oferta pífia de caridadezinha laica. Desossar o esqueleto público, oferecer a carne aos que já têm o frigorífico cheio, lançar os ossos a uma matilha de pobres esfomeados...
Não há volta a dar à conversa. Passámos a viver sob a lei da selva, uma lei da selva que nos menoriza e irresponsabiliza, reduzidos à condição de bichos a viver num canil. Porque, não nos esqueçamos, quem come a carne não precisa de roer os ossos... E quem a come, para mal dos nossos pecados, não são os mais competentes ou os mais fortes, mas apenas aqueles que sabem lamber a mão do dono ou lhe oferecem (como gratificação antecipada, vulgo "suborno") o melhor coelho ou a mais gorda galinhola que conseguiram na caçada.
Nicolau Saião
SERENAMENTE
Com a naturalidade das coisas vivas e em progressão, a “Editorial Escrituras” de S.Paulo, com o contributo do IPLB lusitano, continua a sua caminhada.
Dentro de dias sairão antologias de Isabel Meyreles, Armando Silva Carvalho, João Barrento e do signatário.
Para o ano que está à porta já se seleccionaram as que se debruçarão sobre Maria Estela Guedes, Saul Dias, Luiz Pacheco, Luiza Neto Jorge, José do Carmo Francisco, Carlos Garcia de Castro e António Barahona, em organização do responsável pela colecção (“Ponte Velha”) que lhes dá guarida, o poeta e crítico Floriano Martins – director, com Cláudio Willer, da revista “Agulha”.
A colecção pretendeu ser – e já é – uma ponte sobre o Atlântico, mar que deve a meu ver unir e não afastar dois países, dois mundos, duas vivências ligadas por um língua (para além das afinidades e do afecto mútuos).
E como não há 2007 sem 2008 (e 2009, 2010…) outros autores estão já em gostosa lista de espera.
De um dos que muito prazer tive em sugerir, cabendo-me a tarefa de dar corpo organizativo a esse livro em conjunto com F.M. – Carlos Garcia de Castro – se deixa aqui um dos poemas antologiados:
TALIDOMIDA
Nem voz nem mar nem fome nem destino.
Vem desarmado sem farol de incêndio,
não traz os vimes para lançar ao rio
dos seus abismos literais, o corpo.
É completo por dentro, o decepado,
nada lhe falta aos nervos da cabeça
nem aos miolos da razão endócrina.
Só não tem braços com que se abraçar
à pele da própria unha sem os dedos,
dos lábios quando falha, sem artelhos.
Cresceu e fez-se para ficar um tronco,
uma encomenda quase, ao tiracolo,
de anfíbio que se leva, adulto e berço,
da mesma forma em vida e no caixão.
Nem voz nem mar nem fome nem destino.
Dizem que Nietzsche era um homem louco,
que padecia às vezes de colite.
Por isso se vingara em Zaratrusta
e o dera a melindrar a Natureza
Quimicamente, os deuses desventrados.
(…) E a pena alcança confessar também
as outras formas de quem é perfeito(…)
Sem voz nem mar nem fome nem destino.
C.G.C – 1970
SERENAMENTE
Com a naturalidade das coisas vivas e em progressão, a “Editorial Escrituras” de S.Paulo, com o contributo do IPLB lusitano, continua a sua caminhada.
Dentro de dias sairão antologias de Isabel Meyreles, Armando Silva Carvalho, João Barrento e do signatário.
Para o ano que está à porta já se seleccionaram as que se debruçarão sobre Maria Estela Guedes, Saul Dias, Luiz Pacheco, Luiza Neto Jorge, José do Carmo Francisco, Carlos Garcia de Castro e António Barahona, em organização do responsável pela colecção (“Ponte Velha”) que lhes dá guarida, o poeta e crítico Floriano Martins – director, com Cláudio Willer, da revista “Agulha”.
A colecção pretendeu ser – e já é – uma ponte sobre o Atlântico, mar que deve a meu ver unir e não afastar dois países, dois mundos, duas vivências ligadas por um língua (para além das afinidades e do afecto mútuos).
E como não há 2007 sem 2008 (e 2009, 2010…) outros autores estão já em gostosa lista de espera.
De um dos que muito prazer tive em sugerir, cabendo-me a tarefa de dar corpo organizativo a esse livro em conjunto com F.M. – Carlos Garcia de Castro – se deixa aqui um dos poemas antologiados:
TALIDOMIDA
Nem voz nem mar nem fome nem destino.
Vem desarmado sem farol de incêndio,
não traz os vimes para lançar ao rio
dos seus abismos literais, o corpo.
É completo por dentro, o decepado,
nada lhe falta aos nervos da cabeça
nem aos miolos da razão endócrina.
Só não tem braços com que se abraçar
à pele da própria unha sem os dedos,
dos lábios quando falha, sem artelhos.
Cresceu e fez-se para ficar um tronco,
uma encomenda quase, ao tiracolo,
de anfíbio que se leva, adulto e berço,
da mesma forma em vida e no caixão.
Nem voz nem mar nem fome nem destino.
Dizem que Nietzsche era um homem louco,
que padecia às vezes de colite.
Por isso se vingara em Zaratrusta
e o dera a melindrar a Natureza
Quimicamente, os deuses desventrados.
(…) E a pena alcança confessar também
as outras formas de quem é perfeito(…)
Sem voz nem mar nem fome nem destino.
C.G.C – 1970
MORTO, VIVO OU MORIBUNDO?
O crítico de arte João Pinharanda, no Milfolhas de sexta passada, declarou morto o surrealismo, considerando-o ainda moribundo naqueles que o reivindicam por razões históricas ou instrumento de oportunismo naqueles que o invocam quando lhes dá jeito.
Esqueceu, neste seu apressado atestado de óbito, que o surrealismo constitui uma ética e uma estética de transversalidade horizontal e vertical, sendo, por isso, escorregadio às tentativas académicas de catalogação que, no fundo, desejam mumificá-lo e torná-lo, assim, inofensivo para o status quo.
(Não escrevo, claro, sobre as palhaçadas de Dalí e de seus epígonos que, como referia Cesariny, tanto mal fizeram ao surrealismo...)
(Na imagem: um quadro do pintor surrealista João Garção.)
José do Carmo Francisco
O Cemitério de Pianos
de José Luís Peixoto
Nos Jogos Olímpicos de 1912 em Estocolmo o maratonista português Francisco Lázaro morreu ao quilómetro trinta. Era carpinteiro numa oficina do Bairro Alto e vivia em Benfica.
A partir deste "drama em gente" José Luís Peixoto organiza uma ficção na qual se permite algumas fugas ao verosímil. Por isso há passeios em Monsanto, há a telefonia a tocar, há semáforos e há telefones na casa do carpinteiro, ou seja, quatro coisas que não existiam em 1912.
Mas o que José Luís Peixoto alcança é uma ponte entre a realidade real de um carpinteiro atleta de 1912 e uma família dum certo tempo português. Uma família onde os alcatruzes da vida colocam amor e morte em doses iguais, onde se respira o verso dum folheto. O verso é o seguinte: "enquanto um de nós estiver vivo seremos sempre cinco". Tal como num poema ou numa oração, as palavras de José Luís Peixoto ligam de novo duas realidades que o tempo separou. As páginas deste livro são um encantatório ponto de encontro entre verdade e ficção. Mas sem equívocos. O narrador avisa: "O tempo, conforme um muro, uma torre, qualquer construção, faz com que deixe de haver diferenças entre a verdade e a mentira. O tempo mistura a verdade com a mentira. Aquilo que aconteceu mistura-se com aquilo que eu quero que tenha acontecido e com aquilo que contaram que me aconteceu. A minha memória não é minha. A minha memória sou eu distorcido pelo tempo e misturado comigo próprio: com o meu medo, com a minha culpa, com o meu arrependimento."
Este Cemitério de Pianos é a inesperada, fascinante e impressiva metáfora do Tempo Português do século XX. E a prova de que a única resposta à morte só pode ser o amor.
AINDA CESARINY
Devido ao falecimento de um familiar próximo e consequente afastamento de qualquer actividade profissional e literária durante uma semana, só hoje tive oportunidade de ler as reacções ao meu texto sobre a morte de Mário Cesariny. Não me surpreenderam, nem as positivas nem as negativas. De facto, em todos os momentos, há sempre gente séria que nos ilumina a existência revelando capacidade de entendimento. Quanto aos restantes, nem vale a pena gastar cera com ruins defuntos, tão conhecidas as suas atitudes sacanas.
Sei que na entrada anterior não escrevi palavras mansas. Nem poderia escrever. Se o fizesse, estaria a desrespeitar o testemunho deixado pelo poeta-pintor que, não tendo sido (como afirmei então) um santo foi sem dúvida um "príncipe da liberdade". Mas não terá sido essa falta de mansidão (assim digamos...) que incomodou alguns estômagos fracos. O que terá provocado a azia (consolo-me com isso) terá sido o foco lançado sobre a hipocrisia do nosso pífio meio artístico-literário e deste país que se guia por palavrinhas bem-comportadas, politicamente correctas, mantenedoras do status quo em todos os domínios da nossa sociedade.
Infelizmente, Portugal nunca suportaria a frontalidade das crónicas de um Pérez-Reverte, como suportou mal as intervenções cívicas de Cesariny, tentando (felizmente sem sucesso) expulsá-lo da praça-pública. Só por essa razão se explica o véu de ocultação lançado sobre o poeta. Ainda recentemente uma importante entrevista do autor de Pena Capital ao periódico El País foi praticamente escondida na nossa terra, sendo apenas aludida em tradução publicada no nº. 87 do Courrier Internacional, onde não se escondeu a denúncia das manobras que dominam as auto-intituladas "arte" e "literatura".Palavras como as seguintes provocam má digestão em certos corpos bem instalados...:
"O surrealismo não pode morrer nunca, porque tem várias idades, é transversal e subterrâneo. [...] Apesar de tudo, continuamos vivos. Talvez ignorados e nas catacumbas, mas vivos. Mas faz-nos falta um pouco mais de loucura. Os surrealistas estão a tornar-se demasiado racionalistas."
Devido ao falecimento de um familiar próximo e consequente afastamento de qualquer actividade profissional e literária durante uma semana, só hoje tive oportunidade de ler as reacções ao meu texto sobre a morte de Mário Cesariny. Não me surpreenderam, nem as positivas nem as negativas. De facto, em todos os momentos, há sempre gente séria que nos ilumina a existência revelando capacidade de entendimento. Quanto aos restantes, nem vale a pena gastar cera com ruins defuntos, tão conhecidas as suas atitudes sacanas.
Sei que na entrada anterior não escrevi palavras mansas. Nem poderia escrever. Se o fizesse, estaria a desrespeitar o testemunho deixado pelo poeta-pintor que, não tendo sido (como afirmei então) um santo foi sem dúvida um "príncipe da liberdade". Mas não terá sido essa falta de mansidão (assim digamos...) que incomodou alguns estômagos fracos. O que terá provocado a azia (consolo-me com isso) terá sido o foco lançado sobre a hipocrisia do nosso pífio meio artístico-literário e deste país que se guia por palavrinhas bem-comportadas, politicamente correctas, mantenedoras do status quo em todos os domínios da nossa sociedade.
Infelizmente, Portugal nunca suportaria a frontalidade das crónicas de um Pérez-Reverte, como suportou mal as intervenções cívicas de Cesariny, tentando (felizmente sem sucesso) expulsá-lo da praça-pública. Só por essa razão se explica o véu de ocultação lançado sobre o poeta. Ainda recentemente uma importante entrevista do autor de Pena Capital ao periódico El País foi praticamente escondida na nossa terra, sendo apenas aludida em tradução publicada no nº. 87 do Courrier Internacional, onde não se escondeu a denúncia das manobras que dominam as auto-intituladas "arte" e "literatura".Palavras como as seguintes provocam má digestão em certos corpos bem instalados...:
"O surrealismo não pode morrer nunca, porque tem várias idades, é transversal e subterrâneo. [...] Apesar de tudo, continuamos vivos. Talvez ignorados e nas catacumbas, mas vivos. Mas faz-nos falta um pouco mais de loucura. Os surrealistas estão a tornar-se demasiado racionalistas."
PRÍNCIPE DA LIBERDADE
Mário Cesariny não era um santo, nem sequer um santo literário ou artístico. Era, sem dúvida, como poucos, um príncipe da liberdade - que honrou a Ordem nacional da dita com a sua adesão.
Estará no caixão a rir-se, com vontade de escarrar nas fuças de certos meninos que, fazendo parte do muro de ocultação que toda a vida tentou rasteirá-lo, vêm agora afirmar - sim-senhora... - a altitude, óbvia, da sua poesia e da sua pintura. Desejam, no fundo, esconder que a grandeza expressiva e interior de quanto escreveu e pintou é a melhor prova contra a sua mediocridade, a sua hipocrisia e a sua maldade...
Quem baterá latas no seu funeral, hoje? Quem romperá aos saltos e aos pinotes? Quem fará estalar no ar chicotes? É preciso... porque o corpo invisível glorioso deste Mário-Outro deve ir de burro, entrando nos Prazeres (estranha polissemia...) aclamado como um ungido pelas palavras e pelas tintas.
Emanação luminosa da impureza do estrume que somos, conseguiu encontrar aí - como o pinto da narrativa tradicional - o ouro que nos faz suportar este mundo, feito de tanta merda que nada fertiliza.
Mário Cesariny não era um santo, nem sequer um santo literário ou artístico. Era, sem dúvida, como poucos, um príncipe da liberdade - que honrou a Ordem nacional da dita com a sua adesão.
Estará no caixão a rir-se, com vontade de escarrar nas fuças de certos meninos que, fazendo parte do muro de ocultação que toda a vida tentou rasteirá-lo, vêm agora afirmar - sim-senhora... - a altitude, óbvia, da sua poesia e da sua pintura. Desejam, no fundo, esconder que a grandeza expressiva e interior de quanto escreveu e pintou é a melhor prova contra a sua mediocridade, a sua hipocrisia e a sua maldade...
Quem baterá latas no seu funeral, hoje? Quem romperá aos saltos e aos pinotes? Quem fará estalar no ar chicotes? É preciso... porque o corpo invisível glorioso deste Mário-Outro deve ir de burro, entrando nos Prazeres (estranha polissemia...) aclamado como um ungido pelas palavras e pelas tintas.
Emanação luminosa da impureza do estrume que somos, conseguiu encontrar aí - como o pinto da narrativa tradicional - o ouro que nos faz suportar este mundo, feito de tanta merda que nada fertiliza.
HOMENAGEM A CESARINY
De forma humilde, "Estrada do Alicerce" homenageará durante a semana este poeta e pintor que ontem partiu corporalmente. Iniciámos este caminho com um texto frontalíssimo de Nicolau Saião, amigo íntimo de Cesariny, que dele guarda memórias e iluminações. Continuaremos, suspendendo o andamento normal de publicações que aqui costumam surgir de segunda a quinta. É uma forma de lhe agradecermos quanto nos deu.
De forma humilde, "Estrada do Alicerce" homenageará durante a semana este poeta e pintor que ontem partiu corporalmente. Iniciámos este caminho com um texto frontalíssimo de Nicolau Saião, amigo íntimo de Cesariny, que dele guarda memórias e iluminações. Continuaremos, suspendendo o andamento normal de publicações que aqui costumam surgir de segunda a quinta. É uma forma de lhe agradecermos quanto nos deu.
Homenagem a MÁRIO CESARINY (1923-2006)
Morrer sim,
mas devagar…
No triste jet set das letras (melhor seria dizer trocaletras) da nossa praça, para além daqueles que o estimaram e o souberam ler e ver havia dois grupos de fabianos sempre de goela aberta para melhor devorarem (tentar devorar) o universo conceptual que o norteara, de que se reivindicava e onde se inventava mesmo velho e doente: o surrealismo.
Esses dois grupos, pequenos jogadores das escritas e das pinturações, eram ou são: os que lhe exaltavam a pintura para melhor lhe rebaixarem a poesia e os que lhe elevavam a escrita para mais eficazmente lhe escaqueirarem o mundo plástico. Mas – e o truque nefando consiste nisto – no fundo não era a ele que visavam, tanto mais que a manobra já não colhia por ele lhes ter escapado para outros olimpos mais específicos. O que essa gente tentava e tenta era impedir que companheiros mais novos e com outras soluções de continuidade ficassem sem voz, tão submersos como nos tempos da ditadura que ele detestava, como detestou todas as outras.
Essa gente, permitindo-lhe agora existir sem peias depois de durante os princípios da sua vida o buscarem liquidar e emudecer, queriam que ele se tornasse um refém dos que em Portugal põem e dispõem através da mentira cultural que vê a escrita e a literatura como aparelhagens para fazer “fins de meses” ou carreiras que eles mesmos controlam…
Hoje como ontem, num país onde a realidade já está mais que apodrecida, o surrealismo continua a perturbar porque não é um álibi para mercadores de carne assassinada. Por isso o acatitavam, fingindo que o amavam, visando transformá-lo numa espécie de faraó que caucionasse melhor as tentativas de extinção de um pensamento que é existência em todas as direcções e que ele sempre perfilhou.
Durou 83 anos. Fez o que pôde e como pôde para exemplificar que as palavras que de facto contam passam pelos continentes da liberdade, do amor humano e do espírito sem algemas.
E, apesar dos zoilos e dos medíocres continuarem a tentar queimar o “castelo encantado”, que para eles tem a forma de literatice ou de convenção imagética - seja neste país, seja nos outros onde vivem e actuam muitos companheiros de sonho e de vigília, a busca da maravilha continua.
Nicolau Saião
YUSSEF IBRAHIM
“[...] Chegou o momento de se darem conta do efeito dessas milícias na vossa situação e de se questionarem se as organizações como o Hamas e a Fatá estão realmente a trabalhar para o vosso bem e se querem continuar a submeter-se cegamente à sua direcção.
Se são lúcidos, vão compreender que a violência e a guerra contra Israel pertencem ao passado. Se querem salvar o que pode ser salvo, não têm outra opção que não seja reconhecer a inanidade da ‘luta eterna’ que já não tem significado e que não passa de um ‘slogan’ vazio utilizado pelos fundamentalistas. O que é certo é que os vossos filhos estão a crescer na miséria e que a cultura do martírio produz a ignorância e o analfabetismo e não a esperança de um futuro melhor a que eles aspiram. [...]
[...]
Enquanto que os outros países possuem petróleo, indústria ou agricultura, temos de admitir que vocês, caros irmãos palestinianos, não têm absolutamente nada. A Palestina não poderia sobreviver sem a caridade de terceiros, incluindo dos americanos, de certos países europeus e das Nações Unidas. É Muammar Khadafi ou Bashar al-Assad que alimenta os vossos filhos? Que aconteceu ao vosso herói Saddam Hussein? Hoje, a Síria e o Irão incitam-vos a prosseguir a luta contra Israel, mas o que dizer destes dois países? [...] Chegou o momento de perceberem que ambos querem sacrificar-vos, até ao último, numa guerra por procuração. É realmente isso que pretendem?”
(no jornal Al-Ittihad, Abu Dhabi – trad. in Courrier Internacional, 17 a 23 de Novembro de 2006)
“[...] Chegou o momento de se darem conta do efeito dessas milícias na vossa situação e de se questionarem se as organizações como o Hamas e a Fatá estão realmente a trabalhar para o vosso bem e se querem continuar a submeter-se cegamente à sua direcção.
Se são lúcidos, vão compreender que a violência e a guerra contra Israel pertencem ao passado. Se querem salvar o que pode ser salvo, não têm outra opção que não seja reconhecer a inanidade da ‘luta eterna’ que já não tem significado e que não passa de um ‘slogan’ vazio utilizado pelos fundamentalistas. O que é certo é que os vossos filhos estão a crescer na miséria e que a cultura do martírio produz a ignorância e o analfabetismo e não a esperança de um futuro melhor a que eles aspiram. [...]
[...]
Enquanto que os outros países possuem petróleo, indústria ou agricultura, temos de admitir que vocês, caros irmãos palestinianos, não têm absolutamente nada. A Palestina não poderia sobreviver sem a caridade de terceiros, incluindo dos americanos, de certos países europeus e das Nações Unidas. É Muammar Khadafi ou Bashar al-Assad que alimenta os vossos filhos? Que aconteceu ao vosso herói Saddam Hussein? Hoje, a Síria e o Irão incitam-vos a prosseguir a luta contra Israel, mas o que dizer destes dois países? [...] Chegou o momento de perceberem que ambos querem sacrificar-vos, até ao último, numa guerra por procuração. É realmente isso que pretendem?”
(no jornal Al-Ittihad, Abu Dhabi – trad. in Courrier Internacional, 17 a 23 de Novembro de 2006)
FIRMINO MENDES
Alentejo
Escolhe-se uma palavra no plural – ondulações,
para poder dizer tudo o que és, com cheiro
a papoila e a montado, a coentros e orégãos,
à volta das casas brancas. A terra é de mais
– ondulada volteia, gira na distância plana.
À porta dos montes ladram alguns cães
– os mesmos que rodeiam os rebanhos
que transportam a música pelos valados.
Aos largos das vilas chegam alguns homens
– os mesmos que afagaram e bafejaram a terra
e esperam a morte como um surdo regresso.
Tão forte – tão de pão, vinho e cortiça.
Tão frágil – de aromáticas ervas na cozinha.
Tão ondulado – o pão, as migas.
Tão áspero – a cortiça, os cardos.
Tão doce – conventuais delícias.
Outro Alentejo
O céu múltiplo à noite, no monte abandonado às aves
ou esta festa de gente para o girassol que nasce:
– as casas térreas brancas alongadas, os poços redondos,
as cegonhas, as garças, a nespereira cheia, o tronco negro
dos sobreiros cheios de cortiça, as figueiras, as roseiras bravas,
a semente das papoilas no inverno.
Que flor lilás cobre o campo de Maio,
ao lado da camomila branca e do malmequer?
A luz dos olhos: – este texto branco ao lado das casas,
como o rebanho que passa em plano, cobrindo tudo e mostrando
as cores dos corpos, dos figos, das pedras, da alfarroba.
Quem poderá dizer o berço das memórias?
Tão perto parou o tempo: – parece um verso dizê-lo ou um silêncio
neste montado onde adormecem todos os animais perdidos.
A cortiça tem a sombra das figueiras, ao lado da casa, ou um caminho
de vento para a viagem. De quem a corta poucos falarão no poema
e de quem a afaga nunca se falará neste lugar entre mar e Espanha,
tão múltiplo como o céu que o protege.
(nº 14, 29/6/2001)
Alentejo
Escolhe-se uma palavra no plural – ondulações,
para poder dizer tudo o que és, com cheiro
a papoila e a montado, a coentros e orégãos,
à volta das casas brancas. A terra é de mais
– ondulada volteia, gira na distância plana.
À porta dos montes ladram alguns cães
– os mesmos que rodeiam os rebanhos
que transportam a música pelos valados.
Aos largos das vilas chegam alguns homens
– os mesmos que afagaram e bafejaram a terra
e esperam a morte como um surdo regresso.
Tão forte – tão de pão, vinho e cortiça.
Tão frágil – de aromáticas ervas na cozinha.
Tão ondulado – o pão, as migas.
Tão áspero – a cortiça, os cardos.
Tão doce – conventuais delícias.
Outro Alentejo
O céu múltiplo à noite, no monte abandonado às aves
ou esta festa de gente para o girassol que nasce:
– as casas térreas brancas alongadas, os poços redondos,
as cegonhas, as garças, a nespereira cheia, o tronco negro
dos sobreiros cheios de cortiça, as figueiras, as roseiras bravas,
a semente das papoilas no inverno.
Que flor lilás cobre o campo de Maio,
ao lado da camomila branca e do malmequer?
A luz dos olhos: – este texto branco ao lado das casas,
como o rebanho que passa em plano, cobrindo tudo e mostrando
as cores dos corpos, dos figos, das pedras, da alfarroba.
Quem poderá dizer o berço das memórias?
Tão perto parou o tempo: – parece um verso dizê-lo ou um silêncio
neste montado onde adormecem todos os animais perdidos.
A cortiça tem a sombra das figueiras, ao lado da casa, ou um caminho
de vento para a viagem. De quem a corta poucos falarão no poema
e de quem a afaga nunca se falará neste lugar entre mar e Espanha,
tão múltiplo como o céu que o protege.
(nº 14, 29/6/2001)
META-CARTA A DEUS
É comovente a "meta-carta" dirigida a Deus por José Augusto Mourão. Todos ganhamos com a sua leitura, sejamos crentes ou não-crentes.
ASSIM SE MANIPULA A VERDADE
1. Nos últimos tempos disse-se, citando a OCDE e para os denegrir, que os professores portugueses eram dos mais bem pagos da Europa. O que permitiu a notícia, glosada até à náusea, foi um gráfico que se refere apenas aos professores do secundário com 15 anos de serviço, em função do PIB por habitante, que é dos mais baixos da Europa. Na mesma página, logo por cima do gráfico utilizado, está outro, bem mais relevante, que ordena os professores em função do valor absoluto do salário. E nesse, num total de 31 países estudados, os professores portugueses ocupam a 20.ª posição! Mas, sobre isto, nada se disse!
2. Disse-se, aludindo ao mesmo estafado indicador, que somos dos que mais gastamos com a educação. Mas não se disse o que importa: que o dinheiro efectivo gasto por aluno nos atira para a 23.ª posição entre os 33 países examinados e que, mesmo em relação ao PIB, estamos, afinal, num miserável 19.º lugar.
3. Disse-se que a prioridade das prioridades era a qualificação dos portugueses, mas não se disse como se concilia isso com o corte de 4,2 por cento na educação básica e secundária e 8,2 por cento no ensino superior. Como tão-pouco se disse, do mesmo passo, que os subsídios pagos pelo Estado a alguns colégios privados cresceram exponencialmente, de 71 a 108 por cento, como se retira da matéria publicada no DR de 16 de Outubro!
4. Disse-se, ainda, alto e bom som, que os funcionários do Estado estavam mais bem pagos que os privados. Mas não se disse que um estudo encomendado pelo Ministério das Finanças a uma consultora internacional (é moda agora adjudicar a consultoras externas e pagar-lhes a peso de ouro aquilo que os técnicos dos serviços sabem fazer) concluiu, e por isso foi silenciado, que os funcionários públicos ganham, em média, muito menos do que ganhariam se fizessem o mesmo trabalho para um patrão privado. E estamos a falar de diferenças que são, diz o estudo, de 30, 50, 70 ou mais que 100 por cento, em desfavor do funcionalismo público. Isto não se disse! As cerca de 300 páginas deste estudo estão, prudentemente, silenciadas na gaveta de Teixeira dos Santos.
5. Igualmente silenciados, porque não convém que se diga, estão os dados do Eurostat que mostram a inutilidade das medidas da ministra da Educação para área: o abandono escolar precoce passou dos 38,6 por cento do ano passado para os 40 por cento deste ano, enquanto diminuiu por toda a Europa.
5. Igualmente silenciados, porque não convém que se diga, estão os dados do Eurostat que mostram a inutilidade das medidas da ministra da Educação para a área: o abandono escolar precoce passou dos 38,6 por cento do ano passado para os 40 por cento deste ano, enquanto diminuiu por toda a Europa.
1. Nos últimos tempos disse-se, citando a OCDE e para os denegrir, que os professores portugueses eram dos mais bem pagos da Europa. O que permitiu a notícia, glosada até à náusea, foi um gráfico que se refere apenas aos professores do secundário com 15 anos de serviço, em função do PIB por habitante, que é dos mais baixos da Europa. Na mesma página, logo por cima do gráfico utilizado, está outro, bem mais relevante, que ordena os professores em função do valor absoluto do salário. E nesse, num total de 31 países estudados, os professores portugueses ocupam a 20.ª posição! Mas, sobre isto, nada se disse!
2. Disse-se, aludindo ao mesmo estafado indicador, que somos dos que mais gastamos com a educação. Mas não se disse o que importa: que o dinheiro efectivo gasto por aluno nos atira para a 23.ª posição entre os 33 países examinados e que, mesmo em relação ao PIB, estamos, afinal, num miserável 19.º lugar.
3. Disse-se que a prioridade das prioridades era a qualificação dos portugueses, mas não se disse como se concilia isso com o corte de 4,2 por cento na educação básica e secundária e 8,2 por cento no ensino superior. Como tão-pouco se disse, do mesmo passo, que os subsídios pagos pelo Estado a alguns colégios privados cresceram exponencialmente, de 71 a 108 por cento, como se retira da matéria publicada no DR de 16 de Outubro!
4. Disse-se, ainda, alto e bom som, que os funcionários do Estado estavam mais bem pagos que os privados. Mas não se disse que um estudo encomendado pelo Ministério das Finanças a uma consultora internacional (é moda agora adjudicar a consultoras externas e pagar-lhes a peso de ouro aquilo que os técnicos dos serviços sabem fazer) concluiu, e por isso foi silenciado, que os funcionários públicos ganham, em média, muito menos do que ganhariam se fizessem o mesmo trabalho para um patrão privado. E estamos a falar de diferenças que são, diz o estudo, de 30, 50, 70 ou mais que 100 por cento, em desfavor do funcionalismo público. Isto não se disse! As cerca de 300 páginas deste estudo estão, prudentemente, silenciadas na gaveta de Teixeira dos Santos.
5. Igualmente silenciados, porque não convém que se diga, estão os dados do Eurostat que mostram a inutilidade das medidas da ministra da Educação para área: o abandono escolar precoce passou dos 38,6 por cento do ano passado para os 40 por cento deste ano, enquanto diminuiu por toda a Europa.
5. Igualmente silenciados, porque não convém que se diga, estão os dados do Eurostat que mostram a inutilidade das medidas da ministra da Educação para a área: o abandono escolar precoce passou dos 38,6 por cento do ano passado para os 40 por cento deste ano, enquanto diminuiu por toda a Europa.
(In Público, 20/11/2006)
ARTE SACRA
DA DIOCESE DE BEJA
(novo livro de José António Falcão)
De absoluto a zodíaco se apresenta a arte sacra da diocese de Beja no novo livro de José António Falcão: uma obra inclassificável, absolutamente original no panorama editorial português. Aparecendo com roupagens de dicionário (A a Z, Arte Sacra da Diocese de Beja, numa edição do Departamento do Património Histórico-Artístico desse bispado do Baixo Alentejo), pode ser entendido como um glossário técnico, uma antologia poética, um livro de arte e um volume de crónicas.
José António Falcão vem encabeçando há vários anos uma iniciativa exemplar a vários títulos. Ao contrário do que acontece em várias dioceses portuguesas, em que o património artístico e arquitectónico está à mercê de voluntarismos desastrados e desastrosos que têm levado à perda de peças importantíssimas da arte nacional e internacional, em Beja o voluntariado de leigos empenhados e esclarecidos tem levado ao inventário rigoroso de peças e edifícios, à conservação e ao restauro criteriosos entregues a técnicos competentes, à divulgação do património material de uma região possuidora de religação larga e intensa. Falcão descreve a situação que encontrou quando o Departamento (criado em 1984 por D. Manuel Falcão) iniciou funções (a narração corresponde ao que acontece ainda hoje em muitas outras dioceses):
“Diversos monumentos religiosos jaziam ao abandono [...] enquanto outros eram alvo de intervenções pouco criteriosas que afectavam a integridade material e cultural tanto da arquitectura como dos bens móveis nela integrados. [...] [...] várias imagens seculares eram confiadas a ‘curiosos’ que as pseudo-restauravam com purpurinas e tintas plásticas ou partiam para reparações em oficinas de santeiros do Norte, voltando desfiguradas ou substituídas por réplicas. [...]”
Voltando ao livro, nele encontramos múltiplas entradas. Aceitação, barro, caminho, desespero, entrega, face, guia espiritual, herança, iluminação, justiça, libertação, maternidade, natureza, olhar, pão, quadrilátero, reconquista, saúde, testemunho, universo, vigilância, xeque-mate e zero são apenas alguns dos termos abordados nesta obra de arte onde, para além dos textos do autor, surgem também poemas de Kóstas Varnalis, frei Agostinho da Cruz, W. B. Yeats, Tonino Guerra, Saint-Pol-Roux, Paul Verlaine, etc..
As intervenções de José António Falcão, por seu lado, assumem com frequência um carácter literário, como neste texto comovente, intitulado “Cheio/Vazio”:
“Salvo erro, foi em 1992 que vislumbrei, pela primeira vez, a velha escultura de São Jorge, esquecida num recanto da arrumação do convento de Nossa Senhora do Carmo onde jazem centenas de fragmentos de talha dourada, à espera do dia da ressurreição. Posta em cima de uma mesa, como um traste sem préstimo, a imagem do santo que constituíra motivo de orgulho para muitas gerações de mourenses, quando saía, na procissão do Corpo de Deus, montado num cavalo garboso, acusava agora a severidade dos maus-tratos infligidos no decurso de anos e anos de abandono. As pernas, cada uma caída para o seu lado, já não respondiam às articulações, a armadura, forrada a folha de prata, desenhava uma mancha escura; e, um pouco por toda a extensão do vulto, viam-se fissuras, perdas de camada cromática, sinais de contusões. Nada impressionava mais, porém, do que o rosto, com o terrível contraste entre um olho que vê e o outro vazio. Mesmo assim, o santo guerreiro deixava aflorar nos lábios um sorriso eterno, com a satisfação de quem já encontrou a Verdade. Logo ali jurei que o traria de novo à luz e que lhe poria a órbita esmagada e que o levaria de novo a cavalgar. E aquele sorriso nunca mais me abandonou.”
Com tudo quanto vos apresento, chamar “exemplar” a este livro é ser redundante, tão óbvia a sua qualidade.
JOSÉ DO CARMO FRANCISCO
Miguel Torga (Retrato Breve)
Sobre tudo o mais
Grande amor à terra
Pomares e olivais
E a neve da serra
O som dos animais
O rio em pé de guerra
Os princípios gerais
Que a vida encerra
Sobre tudo o mais
Grande amor à terra
Sem palavras a mais
O poema não emperra
Os sonhos e os ideais
Que não estão na berra
Os princípios gerais
Que a vida encerra
(Este poema será incluído na antologia do centenário do nascimento de Miguel Torga, a publicar no próximo ano pelas edições Almedina.)
948 TEXTOS DEPOIS...
... 18 anos passados, José do Carmo Francisco foi saneado do jornal Sporting, agora dirigido por Miguel Salema Garção. Com esta saída, fecha as suas portas uma das mais antigas colunas de divulgação de livros da imprensa portuguesa. É pena! É pena que tal aconteça, no momento em que se lança um “Plano Nacional de Leitura” (que inventa uma roda já inventada há milénios), em que a crítica literária vem sendo substituída pelo chamado “jornalismo cultural”, frequentemente ignorante, bacoco e/ou traficante de influências.
Em conjunto com outros colegas, José do Carmo Francisco saiu do jornal que ajudou a tornar conhecido na cultura portuguesa. Foi despedido por “não se integrar no espírito da nova equipa”, por ser “demasiado velho” (as desculpas do costume).
É este o mundo (e o país) em que vivemos. A competência, mesmo reconhecida publicamente, vale pouco ou nada. São outros os contra-valores que nos dominam, nos desgastam e nos afundam.
GONÇALO M. TAVARES
água, cão, cavalo, cabeça lido.
Interessam-me pouco, como narrativas, as ficções caóticas que preenchem a primeira metade do livro. Demasiado enleadas, embora com trechos fulgurantes, não provocam estranheza, mas a visão de um entulho literário.
Mais cortantes me parecem os contarelos (o sufixo não é pejorativo, mas dimensional) da segunda parte: coerentes, retalham (autopsiam) o corpo individual e social de seres mutantes, em dissolução.
Até prova em contrário, de toda a poligrafia de Gonçalo M. Tavares continuo a preferir a sua heterodoxa poesia.
Todos uns privilegiados...
Dizem eles que os funcionários públicos são todos uns privilegiados! Leia-se este artigo de Eduardo Pitta.
Dizem eles que os funcionários públicos são todos uns privilegiados! Leia-se este artigo de Eduardo Pitta.
JOSÉ GIL
“Para obter bons resultados, boas estatísticas, boas médias, é preciso ter bons professores. Para os ter, tem de se considerar a especificidade do seu trabalho.
Não é atafulhando o seu tempo [...], nem cortando as ‘pausas’ – de que precisa como de pão para a boca – que se formarão docentes ‘competentes’. Parece haver uma preocupação obsessiva com a quantidade (em todos os domínios) no Ministério da Educação, que o torna cego às virtudes da qualidade. Que os responsáveis pela educação no nosso país possam ter pensado em esmagar assim os professores é sinal de que qualquer coisa de incompreensivelmente absurdo se está a passar nas suas cabeças.”
(in Courrier Internacional, nº 83, de 3 a 9 de Novembro / 2006)
“O que impressiona, nas intervenções mediáticas dos responsáveis do Ministério da Educação, é a ausência total de uma palavra de apreço e incentivo para com os professores. Quando ela vem, parece forçada, demasiado geral, demonstrando uma incompreensão profunda pelas condições do exercício da profissão. Os últimos rumores (verdadeiros) sobre as eventuais oito horas lectivas obrigatórias, mais o corte das ‘pausas’ do Natal, Carnaval e Páscoa, provam que as autoridades encarregadas de conceberem a política educativa do nosso país não sabem – ou não querem saber – o que implica ser professor.
[...]
[...] Tem-se a nítida impressão de que não gostam dos professores – por mais que queiram distingui-los dos sindicatos. Ora, o que está em jogo no actual debate sobre a educação, é a transformação de uma situação há muito desastrosa, criando condições para um ensino de qualidade, à altura das ambições da ‘modernização’ global do País, proclamadas pelo Governo. Nesse quadro, a Educação constitui um pilar essencial do projecto governativo do primeiro-ministro: se ele falha, falhará todo o projecto. Neste momento constata-se que o clima das escolas (professores cansados, abatidos, deprimidos – dos que pertencem às ‘excepções’) não contribui para a boa aplicação dos novos estatutos que aí vêm.
[...]
[...] A actual política educativa parece padecer de toda uma série de disfunções e desfasamentos: muda-se o estatuto da carreira docente, com novas tarefas, mais trabalho, mantendo-se inalterados os conteúdos e negligenciando a formação necessária dos maus professores; instauram-se regras de avaliação, mas não se eliminam os compadrios e as conivências; exigem-se boas vontades para certas tarefas, e quebram-se as vontades não oferecendo contrapartidas; voltam-se os pais contra os professores, estes contra a instância que os tutela, o pessoal administrativo contra os professores, e já mesmo se forma alianças alunos-pais contra o Ministério...
Tudo isto é mau para o ensino e para a educação. Como se a ‘racionalização’ do ensino básico e secundário, ao preocupar-se apenas com alguns dos seus aspectos, e sem visão global, induzisse necessariamente outras formas de irracionalidade e anarquia.”
(in Visão, nº 714, 9 de Novembro / 2006)
“Para obter bons resultados, boas estatísticas, boas médias, é preciso ter bons professores. Para os ter, tem de se considerar a especificidade do seu trabalho.
Não é atafulhando o seu tempo [...], nem cortando as ‘pausas’ – de que precisa como de pão para a boca – que se formarão docentes ‘competentes’. Parece haver uma preocupação obsessiva com a quantidade (em todos os domínios) no Ministério da Educação, que o torna cego às virtudes da qualidade. Que os responsáveis pela educação no nosso país possam ter pensado em esmagar assim os professores é sinal de que qualquer coisa de incompreensivelmente absurdo se está a passar nas suas cabeças.”
(in Courrier Internacional, nº 83, de 3 a 9 de Novembro / 2006)
“O que impressiona, nas intervenções mediáticas dos responsáveis do Ministério da Educação, é a ausência total de uma palavra de apreço e incentivo para com os professores. Quando ela vem, parece forçada, demasiado geral, demonstrando uma incompreensão profunda pelas condições do exercício da profissão. Os últimos rumores (verdadeiros) sobre as eventuais oito horas lectivas obrigatórias, mais o corte das ‘pausas’ do Natal, Carnaval e Páscoa, provam que as autoridades encarregadas de conceberem a política educativa do nosso país não sabem – ou não querem saber – o que implica ser professor.
[...]
[...] Tem-se a nítida impressão de que não gostam dos professores – por mais que queiram distingui-los dos sindicatos. Ora, o que está em jogo no actual debate sobre a educação, é a transformação de uma situação há muito desastrosa, criando condições para um ensino de qualidade, à altura das ambições da ‘modernização’ global do País, proclamadas pelo Governo. Nesse quadro, a Educação constitui um pilar essencial do projecto governativo do primeiro-ministro: se ele falha, falhará todo o projecto. Neste momento constata-se que o clima das escolas (professores cansados, abatidos, deprimidos – dos que pertencem às ‘excepções’) não contribui para a boa aplicação dos novos estatutos que aí vêm.
[...]
[...] A actual política educativa parece padecer de toda uma série de disfunções e desfasamentos: muda-se o estatuto da carreira docente, com novas tarefas, mais trabalho, mantendo-se inalterados os conteúdos e negligenciando a formação necessária dos maus professores; instauram-se regras de avaliação, mas não se eliminam os compadrios e as conivências; exigem-se boas vontades para certas tarefas, e quebram-se as vontades não oferecendo contrapartidas; voltam-se os pais contra os professores, estes contra a instância que os tutela, o pessoal administrativo contra os professores, e já mesmo se forma alianças alunos-pais contra o Ministério...
Tudo isto é mau para o ensino e para a educação. Como se a ‘racionalização’ do ensino básico e secundário, ao preocupar-se apenas com alguns dos seus aspectos, e sem visão global, induzisse necessariamente outras formas de irracionalidade e anarquia.”
(in Visão, nº 714, 9 de Novembro / 2006)
WALLACE STEVENS
De todos os poemas que li até agora de Wallace Stevens, nenhum consegue superar a força do tríptico "The Rock" (que deu nome ao seu último livro). Lendo-o, percebemos com exactidão o que defendia quando afirmava que "o espírito nasce do corpo do mundo". Estamos perante um irmão ("falso", mas irmão) de Cristina Campo, em que a atenção extrema à matéria imanente do universo visa a sua multiplicação infinita através do verbo poético, porque "Deus e a imaginação são um só".
(Brevemente publicarei aqui algumas traduções minhas de poemas de Stevens.)
NOVIDADES NO TRIPLOV
A página Triplo V tem novidades, algumas delas muito saborosas. Entre elas, permito-me destacar um artigo de João Garção ("Com Raul Proença pelo estômago") e uma antologia do poeta brasileiro Soares Feitosa, acompanhada por um artigo de Nicolau Saião. Não perderão tempo com a leitura.
A página Triplo V tem novidades, algumas delas muito saborosas. Entre elas, permito-me destacar um artigo de João Garção ("Com Raul Proença pelo estômago") e uma antologia do poeta brasileiro Soares Feitosa, acompanhada por um artigo de Nicolau Saião. Não perderão tempo com a leitura.
DINIS MACHADO
II Soneto para Cesário
(escrito há 40 anos)
Se te encontrasse, agora, na paisagem
nocturna dos fantasmas da cidade,
contava-te dos nossos pobres versos
no teu rasto de sombra e claridade
Contava-te do frio que há em medir
a distância entre as mãos e as estrelas,
com lágrimas de pedra nos sapatos
e um cansaço impossível de escondê-las
Contava-te – sei lá! – desta rotina
de embalarmos a morte nas paredes,
de tecermos o destino nas valetas
De uma história de luas e de esquinas
com retratos e flores da madrugada
a boiarem na água das sarjetas
(oferta e celebração a José do Carmo Francisco no dia do seu 43º aniversário)
(nº 13, 25/05/2001)
II Soneto para Cesário
(escrito há 40 anos)
Se te encontrasse, agora, na paisagem
nocturna dos fantasmas da cidade,
contava-te dos nossos pobres versos
no teu rasto de sombra e claridade
Contava-te do frio que há em medir
a distância entre as mãos e as estrelas,
com lágrimas de pedra nos sapatos
e um cansaço impossível de escondê-las
Contava-te – sei lá! – desta rotina
de embalarmos a morte nas paredes,
de tecermos o destino nas valetas
De uma história de luas e de esquinas
com retratos e flores da madrugada
a boiarem na água das sarjetas
(oferta e celebração a José do Carmo Francisco no dia do seu 43º aniversário)
(nº 13, 25/05/2001)
JOSÉ DO CARMO FRANCISCO
Louvor e glorificação
do senhor António
Chama-se Maria da Conceição a mais bela habitante da Beira Litoral da colheita de 1954 e teve a feliz ideia de me apresentar o senhor António. Ora o senhor António é daquelas pessoas que pode trabalhar muito mas não vai enriquecer. O seu fato de todos os dias é o fato-macaco e o lugar é a oficina de mecânica onde a sua arte pontifica. Chamar-lhe arte é pouco. No senhor António é mais do que arte; é ciência. Para ele a possibilidade de reparar uma avaria num automóvel é sempre a oportunidade de exercitar o seu sentido de poupança, de desenrascanço e de honradez. É que o olhar do senhor António é mesmo honrado e límpido. Ele quer ajudar as pessoas a resolverem o problema que é o automóvel avariado. Ele não tem o sonho de enriquecer à custa dos automóveis dos seus clientes. Por isso o senhor António mostra as peças que foi preciso substituir. Por isso o senhor António chega a perguntar se o cliente não se importa que ele compre uma nova placa de matrícula para o lugar da outra já velha de oito anos. E a placa custa só cinco euros. Por isso o senhor António perde uma manhã na inspecção da viatura do seu cliente mas no fim cobra apenas vinte euros pelo seu trabalho. E todos nós sabemos que uma manhã de trabalho para nós vale mais que vinte euros. Para o senhor António também. Percebe-se que o senhor António não enriqueceu nem vai enriquecer. Isto em termos de dinheiro. Mas a amizade, o respeito e a consideração dos seus clientes vale mais do que o dinheiro. Vale o sorriso do senhor António que sente prazer em ajudar os seus clientes que chegam à oficina preocupados e partem tranquilos. E esse sorriso não tem preço nem em euros nem em qualquer outra moeda.
OS DETERGENTES DA HISTÓRIA
GATO ESCONDIDO, RABO DE FORA
Ao reler no passado domingo o volume da História de Portugal coordenada por José Matoso correspondente ao período de dominação islâmica da Península Ibérica, deparei-me com um texto de Cláudio Torres no qual afirma que os regimes islâmicos foram sempre tolerantes em relação às outras religiões, excepto a partir da criação do Estado de Israel, em meados do século XX. Curiosamente, algumas páginas depois desta asserção, descreve as consequências nefastas das invasões almorávidas e almóadas, movimentos político-religiosos maometanos que reocuparam a península para “purificarem” a política e o islamismo locais, demasiado permissivos e tolerantes, segundo diziam. Foi nessa época que os cristãos e judeus se viram mais perseguidos (nem os muçulmanos heterodoxos foram poupados). Os seus cultos foram proibidos, sob pena de morte, e os seus templos destruídos, o que provocou nomeadamente a emigração dos cristãos moçárabes para o norte da Ibérica. Tudo isto é confirmado pelo arqueólogo de Mértola.
Poderia listar todas as atrocidades intolerantes dos regimes político-religiosos muçulmanos que dominaram ou dominam boa parte do mundo mediterrânico, mas a contradição de Cláudio Torres é evidente. De um lado, a ficção; do outro a verdade. Prova a que ponto chegam as tentativas de limpeza (voluntária ou involuntária) da história, levada a cabo pela cegueira pan-islamita.
ESQUEÇAMOS O ALCORÃO
Também no domingo passado assisti na televisão ao espaço informativo dirigido pela comunidade islâmica de Lisboa. Conhecida pelo seu bom senso e pela sua integração social, esperava aprender algo neste tempo que dediquei ao visionamento de um debate (?) sobre a presença ou a ausência da violência no livro sagrado islâmico.
Depois de tentar convencer os telespectadores da bondade total do Alcorão – que, ao contrário do que se diz, não foi escrito por Maomé, mas algumas décadas depois da sua morte pelos seus sucessores omíadas, em plena guerra expansionista, como afirmou no sobredito programa o historiador Dias Farinha –, afirmou, a dado passo, que os cidadãos não-muçulmanos interpretam mal as palavras aí escritas porque não conhecem a língua árabe. Questionado por uma jornalista presente sobre a qualidade das traduções do livro maometano, confirmou que não é grande. A surpresa (?) nasceu-me quando a interlocutora do responsável pela mesquita de Lisboa lhe sugeriu que a comunidade portuguesa trabalhasse no sentido de se editar uma tradução fiável das escrituras islâmicas. Para meu espanto (?), David Munir respondeu mais ou menos assim:
- Penso que não é necessário. Mais importante do que ler o Alcorão é conhecer os comentários que se têm escrito sobre ele...
Estamos entendidos. Com pessoas destas podemos ir a barulhos... É realmente muito perigoso ler o Alcorão. Poderemos descobrir coisas que, de facto, nos ajudarão a compreender melhor o nosso mundo. E isso é muito perigoso.
GATO ESCONDIDO, RABO DE FORA
Ao reler no passado domingo o volume da História de Portugal coordenada por José Matoso correspondente ao período de dominação islâmica da Península Ibérica, deparei-me com um texto de Cláudio Torres no qual afirma que os regimes islâmicos foram sempre tolerantes em relação às outras religiões, excepto a partir da criação do Estado de Israel, em meados do século XX. Curiosamente, algumas páginas depois desta asserção, descreve as consequências nefastas das invasões almorávidas e almóadas, movimentos político-religiosos maometanos que reocuparam a península para “purificarem” a política e o islamismo locais, demasiado permissivos e tolerantes, segundo diziam. Foi nessa época que os cristãos e judeus se viram mais perseguidos (nem os muçulmanos heterodoxos foram poupados). Os seus cultos foram proibidos, sob pena de morte, e os seus templos destruídos, o que provocou nomeadamente a emigração dos cristãos moçárabes para o norte da Ibérica. Tudo isto é confirmado pelo arqueólogo de Mértola.
Poderia listar todas as atrocidades intolerantes dos regimes político-religiosos muçulmanos que dominaram ou dominam boa parte do mundo mediterrânico, mas a contradição de Cláudio Torres é evidente. De um lado, a ficção; do outro a verdade. Prova a que ponto chegam as tentativas de limpeza (voluntária ou involuntária) da história, levada a cabo pela cegueira pan-islamita.
ESQUEÇAMOS O ALCORÃO
Também no domingo passado assisti na televisão ao espaço informativo dirigido pela comunidade islâmica de Lisboa. Conhecida pelo seu bom senso e pela sua integração social, esperava aprender algo neste tempo que dediquei ao visionamento de um debate (?) sobre a presença ou a ausência da violência no livro sagrado islâmico.
Depois de tentar convencer os telespectadores da bondade total do Alcorão – que, ao contrário do que se diz, não foi escrito por Maomé, mas algumas décadas depois da sua morte pelos seus sucessores omíadas, em plena guerra expansionista, como afirmou no sobredito programa o historiador Dias Farinha –, afirmou, a dado passo, que os cidadãos não-muçulmanos interpretam mal as palavras aí escritas porque não conhecem a língua árabe. Questionado por uma jornalista presente sobre a qualidade das traduções do livro maometano, confirmou que não é grande. A surpresa (?) nasceu-me quando a interlocutora do responsável pela mesquita de Lisboa lhe sugeriu que a comunidade portuguesa trabalhasse no sentido de se editar uma tradução fiável das escrituras islâmicas. Para meu espanto (?), David Munir respondeu mais ou menos assim:
- Penso que não é necessário. Mais importante do que ler o Alcorão é conhecer os comentários que se têm escrito sobre ele...
Estamos entendidos. Com pessoas destas podemos ir a barulhos... É realmente muito perigoso ler o Alcorão. Poderemos descobrir coisas que, de facto, nos ajudarão a compreender melhor o nosso mundo. E isso é muito perigoso.
ARTURO PÉREZ-REVERTE
Azeite, cultura e memória
Acabo de receber o primeiro azeite do ano, que me enviaram uns amigos: óleo de azeitona virgem, decantado e limpo, depois da sua colheita há um mês ou dois. Chegam-me sempre por estas alturas alguns litros engarrafados e enlatados que entesouro na despensa, e que irei gastando, a pouco e pouco, durante os próximos meses, com muita mesura e respeito. E é curioso. Sou exactamente o contrário de um gourmet. Como e bebo o que é preciso. Mas antes, com a juventude e as pressas do trabalho e de outras realidades, ainda dava menor valor às coisas da gastronomia. Tomava azeite com torradas, ou colocando-o numa salada, ou com ovos fritos, sem reparar demasiado nele. Quem, como eu, come quase de pé, sabe do que falo. O que se passou, a pouco e pouco, com o tempo e com a calma, quando olhar em volta e para trás começa a ser proveitoso, é que comecei a estar a atento a certos matizes. A valorizar coisas que antes me passavam completamente ao lado. No que ao azeite diz respeito, foi decisiva a intervenção do meu amigo e compadre Juan Eslava Galán, que é uma autoridade azeiteira – no bom sentido da palavra –. Isto não significa que me tenha tornado num perito; mas é verdade que agora, quando abro uma garrafa ou uma lata e ponho a correr um fio desse líquido aromático, dourado e transparente, sei muito bem o que tenho por diante. E encanta-me.
Não se trata apenas de azeite, nem de comida, nem de cozinha. O óleo de azeitona faz parte não somente da nossa mesa, mas da memória, da cultura e até da verdadeira pátria, se entendermos assim esse lugar antigo, generoso, chamado Mediterrâneo: essa buliçosa praça pública onde tudo nasceu, em torno de águas azuis pelas quais já viajavam, há uns dez mil anos, naves negras com um olho pintado na proa. Falo do lago interior que nos trouxe deuses, heróis, palavra, razão e democracia. Do mar de entardeceres cor de vinho e de margens salpicadas por templos e oliveiras, onde se fundiram, para iluminar a Europa e o melhor pensamento do Ocidente, as línguas grega, latina e árabe. O cadinho de onde sairá o espanhol que hoje falam quatrocentos milhões de pessoas no mundo. Falo do mar próprio, nosso, que nunca foi obstáculo, mas caminho por onde se espalharam, fundindo-se para criar o que somos, Talmude, Cristianismo e Islão. Não é por acaso que ainda hoje os povos bárbaros – filósofos, escritores e cientistas não alteram o conceito histórico, pois nunca o teriam sido sem a mãe alimentícia – continuem a fritar em banha ou margarina.
Julgo que aqueles que qualificam, sem qualquer matiz, o acto de comer como um acto cultural equiparável à visita a um museu, são uns calhaus e uns simplórios. Sobretudo se observarmos certos comensais: a sua conversa, as suas maneiras e até a sua forma de se refastelarem na cadeira. A cultura nada tem que ver com eles, engulam carne do lombo ou mastiguem uma página dos diálogos de Platão. Mas é verdade que alguns aspectos da gastronomia têm muito a ver com a cultura. Saúde e cozinha à parte, consumir azeite não é um acto banal. É, também, participar num rito e numa tradição seculares, formosos. O currículo desse belo líquido dourado é impressionante: sumo do fruto da oliveira – a seitún árabe – e do trabalho honrado e antigo do homem, já fazia parte dos dízimos que o Livro dos Números recomendava reservar para Deus. Também se utilizava na consagração dos sacerdotes e dos reis de Israel, e mais tarde ungiu os imperadores do Sacro Império e os monarcas europeus antes da sua coroação. E em sociedades com origem cristã, como a nossa, o azeite esteve presente durante séculos tanto na unção do nascimento como na extrema-unção da morte. A costa mediterrânea está pejada de ânforas oleárias de inumeráveis naufrágios, e nos velhos textos abundam alusões: o Deuteronómio chama à Palestina terra de azeite e mel, Homero menciona o azeite na Ilíada e na Odisseia, Aristóteles aponta o seu preço em Atenas, e Marcial, que era romano e hispano – essa Hispânia que alguns imbecis negam que alguma vez tenha existido –, põe nas nuvens o azeite da Bética. Assim, por uma vez, permitam-me um conselho: se querem desfrutar melhor do azeite em cada dia, pensem um instante, quando o utilizem, em tudo o que significa e em tudo quanto é. Vertam-no então com muito cuidado e com muito respeito, procurando não derramar uma gota. Seria malbaratar a nossa própria história.
(in No me cogéreis vivo, 2005; tradução de RV)
Azeite, cultura e memória
Acabo de receber o primeiro azeite do ano, que me enviaram uns amigos: óleo de azeitona virgem, decantado e limpo, depois da sua colheita há um mês ou dois. Chegam-me sempre por estas alturas alguns litros engarrafados e enlatados que entesouro na despensa, e que irei gastando, a pouco e pouco, durante os próximos meses, com muita mesura e respeito. E é curioso. Sou exactamente o contrário de um gourmet. Como e bebo o que é preciso. Mas antes, com a juventude e as pressas do trabalho e de outras realidades, ainda dava menor valor às coisas da gastronomia. Tomava azeite com torradas, ou colocando-o numa salada, ou com ovos fritos, sem reparar demasiado nele. Quem, como eu, come quase de pé, sabe do que falo. O que se passou, a pouco e pouco, com o tempo e com a calma, quando olhar em volta e para trás começa a ser proveitoso, é que comecei a estar a atento a certos matizes. A valorizar coisas que antes me passavam completamente ao lado. No que ao azeite diz respeito, foi decisiva a intervenção do meu amigo e compadre Juan Eslava Galán, que é uma autoridade azeiteira – no bom sentido da palavra –. Isto não significa que me tenha tornado num perito; mas é verdade que agora, quando abro uma garrafa ou uma lata e ponho a correr um fio desse líquido aromático, dourado e transparente, sei muito bem o que tenho por diante. E encanta-me.
Não se trata apenas de azeite, nem de comida, nem de cozinha. O óleo de azeitona faz parte não somente da nossa mesa, mas da memória, da cultura e até da verdadeira pátria, se entendermos assim esse lugar antigo, generoso, chamado Mediterrâneo: essa buliçosa praça pública onde tudo nasceu, em torno de águas azuis pelas quais já viajavam, há uns dez mil anos, naves negras com um olho pintado na proa. Falo do lago interior que nos trouxe deuses, heróis, palavra, razão e democracia. Do mar de entardeceres cor de vinho e de margens salpicadas por templos e oliveiras, onde se fundiram, para iluminar a Europa e o melhor pensamento do Ocidente, as línguas grega, latina e árabe. O cadinho de onde sairá o espanhol que hoje falam quatrocentos milhões de pessoas no mundo. Falo do mar próprio, nosso, que nunca foi obstáculo, mas caminho por onde se espalharam, fundindo-se para criar o que somos, Talmude, Cristianismo e Islão. Não é por acaso que ainda hoje os povos bárbaros – filósofos, escritores e cientistas não alteram o conceito histórico, pois nunca o teriam sido sem a mãe alimentícia – continuem a fritar em banha ou margarina.
Julgo que aqueles que qualificam, sem qualquer matiz, o acto de comer como um acto cultural equiparável à visita a um museu, são uns calhaus e uns simplórios. Sobretudo se observarmos certos comensais: a sua conversa, as suas maneiras e até a sua forma de se refastelarem na cadeira. A cultura nada tem que ver com eles, engulam carne do lombo ou mastiguem uma página dos diálogos de Platão. Mas é verdade que alguns aspectos da gastronomia têm muito a ver com a cultura. Saúde e cozinha à parte, consumir azeite não é um acto banal. É, também, participar num rito e numa tradição seculares, formosos. O currículo desse belo líquido dourado é impressionante: sumo do fruto da oliveira – a seitún árabe – e do trabalho honrado e antigo do homem, já fazia parte dos dízimos que o Livro dos Números recomendava reservar para Deus. Também se utilizava na consagração dos sacerdotes e dos reis de Israel, e mais tarde ungiu os imperadores do Sacro Império e os monarcas europeus antes da sua coroação. E em sociedades com origem cristã, como a nossa, o azeite esteve presente durante séculos tanto na unção do nascimento como na extrema-unção da morte. A costa mediterrânea está pejada de ânforas oleárias de inumeráveis naufrágios, e nos velhos textos abundam alusões: o Deuteronómio chama à Palestina terra de azeite e mel, Homero menciona o azeite na Ilíada e na Odisseia, Aristóteles aponta o seu preço em Atenas, e Marcial, que era romano e hispano – essa Hispânia que alguns imbecis negam que alguma vez tenha existido –, põe nas nuvens o azeite da Bética. Assim, por uma vez, permitam-me um conselho: se querem desfrutar melhor do azeite em cada dia, pensem um instante, quando o utilizem, em tudo o que significa e em tudo quanto é. Vertam-no então com muito cuidado e com muito respeito, procurando não derramar uma gota. Seria malbaratar a nossa própria história.
(in No me cogéreis vivo, 2005; tradução de RV)
ARTURO
PÉREZ-REVERTE
"[...] A la hora de reivindicar a los grandes maestros puede ocurrir algo peor que el semiolvido: su apropiación coyuntural, fraudulenta, por parte de los golfos apandadores de la cultura. Y a menudo me pregunto si no sería mejor dejar a Fulano o a Mengano en su estante polvoriento, como tesoro a conquistar por iniciados y corsarios autodidactas de la letra impresa, que verlos mancillados, desvirtuados, envilecidos, demagógicamente traídos y llevados por oportunistas del caprichos, el interés ou la moda.
[...]
[...] Y lo gracioso es que de pronto, en un artículo, en un programa, uno los lee o los oye, atónito, elogiar como si conocieran, leyeran y admiraran de toda la vida a viejos autores a quienes en otro tiempo no solo ignoraban, sino que denostaban públicamente. Por supuesto, siempre coincide con un centenario, una biografía, un homenaje en el extranjero. Entonces se lo apropian sin más, se ponen al día con una rapidez pasmosa, y de la noche a la mañana se manifiestan extrañadísimos de que nadie lea ahora a Fulano, a Mengano, a Zutano y a otros grandes nombres de la literatura universal; a quienes ellos no sólo no leyeron en su puta vida, sino que encima ayudaron a enterrarlos, sosteniendo que lo que de verdad había que leer [...] era Onán y yo somos así, señora (Anagrama), de Chindasvinto Petisuik, imprescindible minimalista sildavo."
(in No me cogeréis vivo, 2005)
JOSÉ DO CARMO FRANCISCO
A voz de Ana Paula
Por um erro semântico para mim ainda inexplicável há quem chame ao timbre de uma determinada voz o metal da voz. Ao ouvir a voz de Ana Paula – intensa, alta e veemente – percebe-se o erro, percebe-se que não há nada de metálico no esplendor do seu som. Tudo na voz de Ana Paula é redondo, cheio e doce, tudo nos lembra as ondas e a sua espuma branca desmaiada nas praias da Arrábida, tudo nos recorda o murmúrio oceânico, poderoso e antigo de onde nasceram as partituras de todas as orquestras do Mundo. A voz de Ana Paula transporta no seu volume a força da água, a veemência de um lugar líquido que é origem da vida, não apenas da vida individual mas também das civilizações que, sabemos hoje, nasceram e cresceram todas à beira dos rios e dos lagos. A voz de Ana Paula tem sete elementos: desenho, volume, movimento, cor, luz, eloquência e musicalidade. Na janela do comboio que entre Cascais e Lisboa serpenteia entre terra e água, Ana Paula fixa o olhar nas ondas que no lugar da Gibalta quase tocam o metal da composição em marcha. A terra à esquerda é o símbolo da rotina, da monotonia e da vida parada; o mar à direita é o símbolo das viagens, do inesperado, do lugar onde os dissabores, os desgostos e as amarguras podem ser objecto de consolação e purificação. No lugar entre terra e água, a voz de Ana Paula surge como um intervalo feliz que teima em elevar o seu murmúrio por cima do ruído da mesquinhez quotidiana. E não desiste de cantar uma canção que ninguém ouve (porque Ana Paula a canta para dentro) num sussurro sempre doce, sempre cheio e sempre redondo. A voz de Ana Paula é a impetuosa voz da água contra o arrastado cinzento da voz da terra.
A voz de Ana Paula
Por um erro semântico para mim ainda inexplicável há quem chame ao timbre de uma determinada voz o metal da voz. Ao ouvir a voz de Ana Paula – intensa, alta e veemente – percebe-se o erro, percebe-se que não há nada de metálico no esplendor do seu som. Tudo na voz de Ana Paula é redondo, cheio e doce, tudo nos lembra as ondas e a sua espuma branca desmaiada nas praias da Arrábida, tudo nos recorda o murmúrio oceânico, poderoso e antigo de onde nasceram as partituras de todas as orquestras do Mundo. A voz de Ana Paula transporta no seu volume a força da água, a veemência de um lugar líquido que é origem da vida, não apenas da vida individual mas também das civilizações que, sabemos hoje, nasceram e cresceram todas à beira dos rios e dos lagos. A voz de Ana Paula tem sete elementos: desenho, volume, movimento, cor, luz, eloquência e musicalidade. Na janela do comboio que entre Cascais e Lisboa serpenteia entre terra e água, Ana Paula fixa o olhar nas ondas que no lugar da Gibalta quase tocam o metal da composição em marcha. A terra à esquerda é o símbolo da rotina, da monotonia e da vida parada; o mar à direita é o símbolo das viagens, do inesperado, do lugar onde os dissabores, os desgostos e as amarguras podem ser objecto de consolação e purificação. No lugar entre terra e água, a voz de Ana Paula surge como um intervalo feliz que teima em elevar o seu murmúrio por cima do ruído da mesquinhez quotidiana. E não desiste de cantar uma canção que ninguém ouve (porque Ana Paula a canta para dentro) num sussurro sempre doce, sempre cheio e sempre redondo. A voz de Ana Paula é a impetuosa voz da água contra o arrastado cinzento da voz da terra.
YUSTE, AINDA
Só agora percebi por que me tocam tanto estas terras de La Vera. Com as suas densas matas de carvalhos subindo até aos cimos da serra de Gredos, com as suas aldeias encaixadas na meia-encosta das montanhas (como se fossem a pontuação necessária que a natureza não dispensa) - representam para mim uma imagem dupla e larga da serra interior-exterior a que pertenço por nascimento e criação. Confronto-me aqui com uma identidade depurada, porque mais vasta e libertada.
*
Conhecendo Cuacos de Yuste e uma nocturna Jarandilla de la Vera, desta vez não poderia afastar-me de Garganta la Olla, depois de me despedir do mosteiro jerónimo e dos seus altos carvalhos. Valeu a pena a provação iniciática dos buracos na estrada para poder contemplar a serra em todo o seu esplendor. Garganta é uma verdadeira jóia. Esta vila nada tem de magnificente, mas entra em nós como objecto discreto, sem polimento nem lapidação, que não nos deixa porque a ele passamos a pertencer.
(na imagem, a Serra de Gredos)
YUSTE
Neste fim-de-semana, se tudo correr bem, estarei no mosteiro de Yuste (Cáceres, Espanha) para o lançamento da edição multilingue da obra de Anton van Wilderode, A Árvore-das-Borboletas, que tive o prazer de traduzir para a língua portuguesa. A obra do autor flamengo transfigura o último itinerário de Carlos V, de Gant (onde abdicou) até Yuste (onde faleceu e foi sepultado). O lançamento, na tarde de sexta-feira em plena igreja monástica, terá a presença do poeta espanhol Álvaro Valverde e de Beatrijs van Craenenbroeck, escritora e presidente da Associação dos Amigos de Anton van Wilderode.
Yuste vale, no entanto, por si. Não só pela beleza artística e pela memória histórica aí viva, mas sobretudo pela intensidade vegetal do silêncio e pela força dos elementos. É, dos lugares que conheço, um dos mais belos.
Terra fértil para a poesia, tem gerado múltiplas abordagens artísticas. Entre elas, encontra-se um belíssimo poema de Antonio Colinas, que ofereço aos leitores na tradução que se segue:
NO CAMINHO SEM CAMINHO
(Yuste)
Ser como esse cedro cheio de pássaros:
perdurar e cantar.
Não parece sequer mudar
com o incenso que os monges queimam,
com a água esverdeada do tanque,
com todo este esplendor de que recebe
a sua formosa plenitude.
Nunca partirei daqui, mesmo que parta.
Serei sempre laranjeira, hera, rola,
carvalho, ou borboleta, ou pedra eterna,
ainda que, na aparência, nosso corpo
siga por esse caminho sem regresso,
siga por esse caminho sem caminho.
Ainda que parta, ainda que não regresse,
e sinta tão devagar a asfixia dos anos
fui e serei esse cedro que oscila
na borda do tanque,
e que de noite acaricia as estrelas.
Aqui, nesta ladeira, com neve ou sem neve,
está quanto penso alcançar um dia,
por mais que o tempo hoje passe
como o regato que longe murmura:
desgastando rochas, arranhando silvas,
abismado em fontes.
Nunca partirei daqui, mesmo que parta.
Serei sempre rumor, voo de pássaro
do bosque ao jardim,
da sombra até à luz.
Quero ser algo mais do que o fruto vermelho
que brilha e que amadura, e se corrompe
anunciando o verão nas cerejeiras.
Sei que jamais partirei deste jardim.
E que, mesmo partindo,
algo hei-de levar deste paraíso
para outro lado.
Para onde?
Não sei.
O júbilo que hoje sinto é tão grande
que já não creio nem sequer na morte.
Essa morte que um dia fugiu deste lugar
(acaso para o jardim dos jardins),
quando abriram o chumbo e a madeira do sarcófago,
quando arrancaram o cadáver
da tumba do Imperador.
(in Tiempo y Abismo, 2002)
CLUBE DE LEITURA
E DE ESCRITA
Continuando o trabalho desenvolvido no ano passado pela Oficina de Escrita Criativa, disponível em parte no blogue Pequenos Escritores de Santana, eis que surge um novo espaço de divulgação das produções escritas dos alunos do Ensino Básico da Escola Rodrigues Soromenho e da Escola de Santana (ambas no concelho de Sesimbra), intitulado Clube de Leitura e de Escrita (www.escritaleitura.blogspot.com). Durante este ano lectivo, a coordenação será assegurada por Sónia Correia e Maria Rosinha (em Sesimbra), por Ana Carvalho e pelo autor deste blogue (em Santana).
Os alunos e os coordenadores esperam a vossa visita, que desde já agradecem.
Continuando o trabalho desenvolvido no ano passado pela Oficina de Escrita Criativa, disponível em parte no blogue Pequenos Escritores de Santana, eis que surge um novo espaço de divulgação das produções escritas dos alunos do Ensino Básico da Escola Rodrigues Soromenho e da Escola de Santana (ambas no concelho de Sesimbra), intitulado Clube de Leitura e de Escrita (www.escritaleitura.blogspot.com). Durante este ano lectivo, a coordenação será assegurada por Sónia Correia e Maria Rosinha (em Sesimbra), por Ana Carvalho e pelo autor deste blogue (em Santana).
Os alunos e os coordenadores esperam a vossa visita, que desde já agradecem.
O CAOS (FUTURO) NA EDUCAÇÃO
Uma entrada de João Paulo Sousa no blogue Da Literatura chamou-me a atenção para uma reflexão clarividente sobre as consequências futuras da nova avaliação dos professores na qualidade do sistema educativo. O texto, publicado em duas partes no Almocreve das Petas, merece toda a atenção. Felizmente a sociedade começa a acordar.
NICOLAU SAIÃO
Chic a valer!
Conde d’Abranhos - Mas não acha você, Rabecaz, que esta evangelização das massas tem que ser conduzida com jeitinho? Apelando aos sentimentos educacionais do nosso bom povo e sendo discretos...habilidosos? Eu lá com os meus tecnologistas era assim...E, se algum deles levantava cabelo, era sem barulho que o transferia de serviço...que lhe dava uma tarefa inócua, estilo pontapé p'la escada acima... como se dizia nos tempos do compadre Salazedas.
Rabecaz - Oh Abranhos, valha-o deus! Isso são métodos de engenhocas, homem! Eu na minha ilha aprendi que com esta malta só a porrete. É o que eles entendem, além disso lá dizia o conselheiro Acácio que este povo precisa de sentir a mão de gente decidida no cachaço...senão desatam a querer descanso...e tal...e lá se nos vai a obra que tanto custou a erguer Dá-me cá um ferro! É cascar-se-lhes, p'ra bem do país que queremos continuar a ter! Faça-lhes como a Maria de Lurdes…
Dâmaso Salcede - Pois eu não concordo nem com um nem com outro! Quanto a mim isto vai ao jeito...mas com umas palavrinhas sedutoras apropriadas. Lábia e filosofia, meninos! Conversa de afagar corações, o que não significa que não se metam umas ferroadas...umas insinuaçõezinhas torpes ao gosto da maltosa! Como é que pensam que eu consigo o que quero na minha função? Ponho os ajudantes a tarimbar…suavemente. E para os trabalhos mais baixos, se fizer falta, mete-se um opinion-maker com a sua enxurrada de boa conversa a cair em cima da cabeça dos que não queiram as sopas!
Rabecaz – Eu já não acredito que as palavras salvem, como diz aquele letrista premiado. Ai a pena que eu tenho que aqui não seja a minha região! Haviam de comer poucas naquela lombeira... Nenhum desses negregados se safaria de comer no côco umas berlaitadas, como eu fiz aquela vez ao tal pescador com quem andei à porrada numa praia da capital da ilha! Comigo vai tudo raso!
Conde d’Abranhos – Você é sem dúvida um homem de sucesso, mas muito empolgado! Nestas coisas é preciso calma e tecnologia, falar-se-lhes ao sentimento de fidalguia pensadora…Um povo que andou nos mares, Rabecaz, a civilizar a pretalhada não é lá qualquer coisa, seja-se da Beira aqui do Salcede ou cá da vilória do rapaz. Temos de aproveitar os salutares sentimentos de ressabiamento do poviléu e, mansamente, encaminhá-los na direcção certa…
O que eles não podem congeminar, podia fazer-lhes mal à enxaqueca, é que no fim quem deve ficar com o bolo é cá a bela panelinha, hein?!
(Fragmento da única peça que até ao momento se conhece do grande Essa de Quelroz, aqui transcrita por um pesquisador de literaturas atónitas).
Chic a valer!
Conde d’Abranhos - Mas não acha você, Rabecaz, que esta evangelização das massas tem que ser conduzida com jeitinho? Apelando aos sentimentos educacionais do nosso bom povo e sendo discretos...habilidosos? Eu lá com os meus tecnologistas era assim...E, se algum deles levantava cabelo, era sem barulho que o transferia de serviço...que lhe dava uma tarefa inócua, estilo pontapé p'la escada acima... como se dizia nos tempos do compadre Salazedas.
Rabecaz - Oh Abranhos, valha-o deus! Isso são métodos de engenhocas, homem! Eu na minha ilha aprendi que com esta malta só a porrete. É o que eles entendem, além disso lá dizia o conselheiro Acácio que este povo precisa de sentir a mão de gente decidida no cachaço...senão desatam a querer descanso...e tal...e lá se nos vai a obra que tanto custou a erguer Dá-me cá um ferro! É cascar-se-lhes, p'ra bem do país que queremos continuar a ter! Faça-lhes como a Maria de Lurdes…
Dâmaso Salcede - Pois eu não concordo nem com um nem com outro! Quanto a mim isto vai ao jeito...mas com umas palavrinhas sedutoras apropriadas. Lábia e filosofia, meninos! Conversa de afagar corações, o que não significa que não se metam umas ferroadas...umas insinuaçõezinhas torpes ao gosto da maltosa! Como é que pensam que eu consigo o que quero na minha função? Ponho os ajudantes a tarimbar…suavemente. E para os trabalhos mais baixos, se fizer falta, mete-se um opinion-maker com a sua enxurrada de boa conversa a cair em cima da cabeça dos que não queiram as sopas!
Rabecaz – Eu já não acredito que as palavras salvem, como diz aquele letrista premiado. Ai a pena que eu tenho que aqui não seja a minha região! Haviam de comer poucas naquela lombeira... Nenhum desses negregados se safaria de comer no côco umas berlaitadas, como eu fiz aquela vez ao tal pescador com quem andei à porrada numa praia da capital da ilha! Comigo vai tudo raso!
Conde d’Abranhos – Você é sem dúvida um homem de sucesso, mas muito empolgado! Nestas coisas é preciso calma e tecnologia, falar-se-lhes ao sentimento de fidalguia pensadora…Um povo que andou nos mares, Rabecaz, a civilizar a pretalhada não é lá qualquer coisa, seja-se da Beira aqui do Salcede ou cá da vilória do rapaz. Temos de aproveitar os salutares sentimentos de ressabiamento do poviléu e, mansamente, encaminhá-los na direcção certa…
O que eles não podem congeminar, podia fazer-lhes mal à enxaqueca, é que no fim quem deve ficar com o bolo é cá a bela panelinha, hein?!
(Fragmento da única peça que até ao momento se conhece do grande Essa de Quelroz, aqui transcrita por um pesquisador de literaturas atónitas).
JOSÉ DO CARMO FRANCISCO
Não há contrato nem recibos
Numa das minhas idas ao supermercado aqui do meu bairro (o Bairro Alto fidalgo e fanfarrão...) deparei com um curioso anúncio colocado numa caixa de vidro. Vejamos:
“Aluga-se casa pequena com tecto abaixo do normal. Sem máquina de lavar. Semi mobilado. Dois quartos, sala, cozinha e WC. Renda 300 euros mais calção. Não há contrato nem recibos. Fica ao pé do Metro da Avenida.”
Segue-se um telemóvel que começa por 961 e termina em 731 e um nome – DORIS. Completa o quadro insólito um horário para contactos das 19 às 20 horas.
Este anúncio pode ser lido como um sintoma do despudor, da impunidade e da desvergonha que grassa por aqui. Não me refiro à péssima utilização da língua portuguesa. De facto “caução” não é “calção”. “Calção” é para vestir. Mas o mais importante é a possibilidade de alguém se atrever a anunciar em público um aluguer que não fica registado em qualquer documento e cujos pagamentos não estão sujeitos ao controlo de qualquer recibo. É um triste sinal dos tempos e nem está em causa se existe mesmo essa senhora que se assina DORIS. Também não está em causa se aquele telemóvel existe mesmo. O que está em causa é a impunidade com que isto se faz à luz do dia, dentro de um supermercado no coração da cidade de Lisboa. Até parece que estamos não na Europa mas no Terceiro Mundo. Aqueles países onde tudo é irreal e qualquer pessoa pode colocar no seu automóvel um letreiro com a palavra «Táxi» a desatar logo a fazer fretes mas sem taxímetro. O problema não é ela escrever “Não há contratos nem recibos” mas sim ela poder fazer isso sem que ninguém a responsabilize pela ilegalidade que está a anunciar. E ela sabe isso muito bem.
Não há contrato nem recibos
Numa das minhas idas ao supermercado aqui do meu bairro (o Bairro Alto fidalgo e fanfarrão...) deparei com um curioso anúncio colocado numa caixa de vidro. Vejamos:
“Aluga-se casa pequena com tecto abaixo do normal. Sem máquina de lavar. Semi mobilado. Dois quartos, sala, cozinha e WC. Renda 300 euros mais calção. Não há contrato nem recibos. Fica ao pé do Metro da Avenida.”
Segue-se um telemóvel que começa por 961 e termina em 731 e um nome – DORIS. Completa o quadro insólito um horário para contactos das 19 às 20 horas.
Este anúncio pode ser lido como um sintoma do despudor, da impunidade e da desvergonha que grassa por aqui. Não me refiro à péssima utilização da língua portuguesa. De facto “caução” não é “calção”. “Calção” é para vestir. Mas o mais importante é a possibilidade de alguém se atrever a anunciar em público um aluguer que não fica registado em qualquer documento e cujos pagamentos não estão sujeitos ao controlo de qualquer recibo. É um triste sinal dos tempos e nem está em causa se existe mesmo essa senhora que se assina DORIS. Também não está em causa se aquele telemóvel existe mesmo. O que está em causa é a impunidade com que isto se faz à luz do dia, dentro de um supermercado no coração da cidade de Lisboa. Até parece que estamos não na Europa mas no Terceiro Mundo. Aqueles países onde tudo é irreal e qualquer pessoa pode colocar no seu automóvel um letreiro com a palavra «Táxi» a desatar logo a fazer fretes mas sem taxímetro. O problema não é ela escrever “Não há contratos nem recibos” mas sim ela poder fazer isso sem que ninguém a responsabilize pela ilegalidade que está a anunciar. E ela sabe isso muito bem.
DÍMITRA MANDÁ
Nem tu sequer
Em longínquas magníficas paisagens do negro
como pude esquecer
levaram-me até ao mais áspero branco do sol
aos contornos dispersos das ilhas de ontem
como me perdi
buscando sombras
e nem uma só árvore
nem um mar
nem tu sequer
O último mar
Não é já tempo para sonhos
nem para os trabalhos do amor
e nem sequer para as palavras.
Outrora falavas de tantas coisas falavas
e de toda a parte chegavas
no meio de aventuras de cores e de estrelas
e de paisagens marinhas
ao meu corpo chegavas.
Viagens já não existem agora;
quanto tempo passou desde o último mar.
Ausência
Vazio de luz o quarto
vazio o teu corpo
o teu rosto;
as formas silenciam por trás do negro
e lá fora o eco da chuva por sobre a noite.
Esvaziou-se de luz o quarto
o teu corpo
o teu rosto;
as minhas mãos apertam a tua ausência
e a chuva
como se perdeu também ela no meio da noite.
Dímitra Manda nasceu no Peloponeso (Grécia). Os poemas que aqui divulgados, retirados do O Momento do Amor (agora publicado na colecção UniVersos Poesia, das Edições Sempre-em-Pé, com tradução de José Carlos Marques) foram musicados por Mikis Theodorakis e cantados por Angeliki Ionatos no disco Um Mar (Mía Thálassa), de 1995.
Nem tu sequer
Em longínquas magníficas paisagens do negro
como pude esquecer
levaram-me até ao mais áspero branco do sol
aos contornos dispersos das ilhas de ontem
como me perdi
buscando sombras
e nem uma só árvore
nem um mar
nem tu sequer
O último mar
Não é já tempo para sonhos
nem para os trabalhos do amor
e nem sequer para as palavras.
Outrora falavas de tantas coisas falavas
e de toda a parte chegavas
no meio de aventuras de cores e de estrelas
e de paisagens marinhas
ao meu corpo chegavas.
Viagens já não existem agora;
quanto tempo passou desde o último mar.
Ausência
Vazio de luz o quarto
vazio o teu corpo
o teu rosto;
as formas silenciam por trás do negro
e lá fora o eco da chuva por sobre a noite.
Esvaziou-se de luz o quarto
o teu corpo
o teu rosto;
as minhas mãos apertam a tua ausência
e a chuva
como se perdeu também ela no meio da noite.
Dímitra Manda nasceu no Peloponeso (Grécia). Os poemas que aqui divulgados, retirados do O Momento do Amor (agora publicado na colecção UniVersos Poesia, das Edições Sempre-em-Pé, com tradução de José Carlos Marques) foram musicados por Mikis Theodorakis e cantados por Angeliki Ionatos no disco Um Mar (Mía Thálassa), de 1995.
LI E CONCORDEI COM...
BEN DROR YEMINI
Nuno Guerreiro Josué transcreveu a 26 de Setembro na seu Rua da Judiaria um artigo em que todos deveríamos meditar. Foi publicado por Ben Dror Yemini no diário israelita Ma'ariv (22/9/2006) e reflecte sobre o conflito palestiniano e sobre as intervenções bélicas praticadas por israelitas e pelos vários países com religião maioritariamente muçulmana.
Para que essa leitura seja proveitosa é no entanto preciso que saibamos despir-nos de preconceitos de base, anti-semitas e pan-islamitas, que historicamente toldam a mentalidade de muitos europeus e de muitos ocidentais que não hesitam mesmo acusar os seus semelhantes de "estupidez pró-sionista" quando estes apenas tentam olhar os factos sem julgamentos prévios. Não se trata aqui de religião, mas de genocídio. Os factos falam por si.
"Há aqueles que defendem que os estados árabes e muçulmanos são imunes a críticas porque não são democráticos, mas Israel é merecedora de críticas porque tem pretensões democráticas. Argumentos destes revelam um Orientalismo paternalista no seu pior. A suposição encoberta é que os árabes e muçulmanos são as crianças atrasadas mentais do mundo. Eles podem fazê-lo. Isto não é só Orientalismo paternalista. É racismo.
Os árabes e muçulmanos não são crianças e não são atrasados mentais. Muitos árabes e muçulmanos reconhecem este fenómeno e escrevem sobre ele. Eles sabem que só o fim da auto-ilusão e o assumir de responsabilidades pode trazer a mudança. Eles sabem que enquanto o Ocidente os tratar como desiguais e irresponsáveis estará a perpetuar não só uma atitude racista, mas também a continuação das chacinas em massa.
O genocídio que Israel não está a cometer, aquele que é um libelo fraudulento, esconde o verdadeiro genocídio, o genocídio silenciado que árabes e muçulmanos estão a cometer contra si próprios. A fraude tem de acabar para que se possa olhar a realidade. Para o bem dos árabes e muçulmanos. Israel paga em imagem. Eles pagam em sangue. Se restar no mundo alguma moralidade, isto deveria ser do interesse de quem ainda tem dela alguma gota. A acontecer, seria uma pequena notícia para Israel, mas um imensa boa nova para os árabes e muçulmanos."
BEN DROR YEMINI
Nuno Guerreiro Josué transcreveu a 26 de Setembro na seu Rua da Judiaria um artigo em que todos deveríamos meditar. Foi publicado por Ben Dror Yemini no diário israelita Ma'ariv (22/9/2006) e reflecte sobre o conflito palestiniano e sobre as intervenções bélicas praticadas por israelitas e pelos vários países com religião maioritariamente muçulmana.
Para que essa leitura seja proveitosa é no entanto preciso que saibamos despir-nos de preconceitos de base, anti-semitas e pan-islamitas, que historicamente toldam a mentalidade de muitos europeus e de muitos ocidentais que não hesitam mesmo acusar os seus semelhantes de "estupidez pró-sionista" quando estes apenas tentam olhar os factos sem julgamentos prévios. Não se trata aqui de religião, mas de genocídio. Os factos falam por si.
"Há aqueles que defendem que os estados árabes e muçulmanos são imunes a críticas porque não são democráticos, mas Israel é merecedora de críticas porque tem pretensões democráticas. Argumentos destes revelam um Orientalismo paternalista no seu pior. A suposição encoberta é que os árabes e muçulmanos são as crianças atrasadas mentais do mundo. Eles podem fazê-lo. Isto não é só Orientalismo paternalista. É racismo.
Os árabes e muçulmanos não são crianças e não são atrasados mentais. Muitos árabes e muçulmanos reconhecem este fenómeno e escrevem sobre ele. Eles sabem que só o fim da auto-ilusão e o assumir de responsabilidades pode trazer a mudança. Eles sabem que enquanto o Ocidente os tratar como desiguais e irresponsáveis estará a perpetuar não só uma atitude racista, mas também a continuação das chacinas em massa.
O genocídio que Israel não está a cometer, aquele que é um libelo fraudulento, esconde o verdadeiro genocídio, o genocídio silenciado que árabes e muçulmanos estão a cometer contra si próprios. A fraude tem de acabar para que se possa olhar a realidade. Para o bem dos árabes e muçulmanos. Israel paga em imagem. Eles pagam em sangue. Se restar no mundo alguma moralidade, isto deveria ser do interesse de quem ainda tem dela alguma gota. A acontecer, seria uma pequena notícia para Israel, mas um imensa boa nova para os árabes e muçulmanos."
FRAGMENTOS DE UM RETÁBULO
Estão a partir de hoje disponíveis no Triplo V alguns poemas meus ainda não publicados em livro. São reflexões sobre diversas obras de pintura, desde anónimos dos séculos XVI e XVII até Nicolau Saião, Jorge Martins ou Diogo Pimentão, passando por Frida, Degas, Manet ou Zurbarán. Agradeço desde já a vossa visita.
Estão a partir de hoje disponíveis no Triplo V alguns poemas meus ainda não publicados em livro. São reflexões sobre diversas obras de pintura, desde anónimos dos séculos XVI e XVII até Nicolau Saião, Jorge Martins ou Diogo Pimentão, passando por Frida, Degas, Manet ou Zurbarán. Agradeço desde já a vossa visita.
JOSÉ DO CARMO FRANCISCO
Soneto para o primeiro neto
Eu estava bem perto de ti mas não sabia
E tu nascias no Bloco da Universidade
Por isso foi tarde que rompeu a alegria
Havia obras no Metropolitano da cidade
Nasceste quando os jogos têm início
No domingo à tarde em toda a terra
Serás talvez mais um a gozar o vício
Dum jogo que é também arte de guerra
Não sabes que fui comprar uma galinha
E que fizemos com ela uma canjinha
Para que a tua mãe possa ser mais forte
Catorze dias perto de ti no Barbican
Eu a olhar essa Catedral cada manhã
Pedindo que Deus te dê saúde e sorte
O QUE MAIS CUSTA
O que mais custa em todo o processo de revisão do Estatuto da Carreira Docente não é a sua dureza, mas a falta de verdade em que muitos dos passos se baseiam.
Todos sabemos que o país não está financeiramente bem; logo, aceitaríamos os sacrifícios se os víssemos distribuídos com equidade por todas as camadas sociais e por todas as profissões, a partir de exemplos inequívocos vindos dos governantes. Mas nada disto tem sido feito. Retira-se aos mais frágeis para dar aos mais fortes, não havendo qualquer hesitação quando se trata de mentir aos portugueses ou quando se recorre à difamação de amplos sectores da administração pública.
No caso dos professores, trata-se ainda de uma estratégia pensada para torná-los bodes expiatórios do insucesso do sistema educativo, quando ao longo de décadas têm sido apenas agentes aplicadores (e pouco decisores) de políticas que sabem de antemão improdutivas ou, até, destrutivas dos alicerces da qualidade das aprendizagens. E assim se camuflam três décadas de deriva governativa que, em gradação crescente, têm conduzido a uma enorme irresponsabilização dos alunos, produzindo o desastre em que estamos mergulhados.
Há decerto maus profissionais entre os professores, como em qualquer profissão. Necessitamos de uma avaliação rigorosa do desempenho que promova os bons docentes e penalize os maus sem, no entanto, decidir à partida, de forma economicista, quantos podem atingir a excelência. Não existe, contudo, o direito de nos humilharem como se fôssemos lixo, como estratégia para a criação de uma classe docente dócil e barata, estratégia que pouco se preocupa com as consequências nefastas que tudo isto terá no real sucesso educativo dos alunos e do sistema.
GREVE
Nunca, como agora, senti tanta vontade de mudar de profissão. Se algum dia conseguir dar o salto, sentirei falta apenas dos alunos (mesmo dos mais difíceis), pois com eles tenho passado as melhores horas destes doze anos de docência.
Cada vez mais me custa aguentar os ataques de que os professores são alvo todos os dias e as mentiras que, sobre nós e sobre a nossa carreira, circulam um pouco por todo o lado. Consagrada na legislação - como desejam a ministra, os secretários de estado, o primeiro-ministro e mais alguns cidadãos mergulhados em espírito de inconfessável vingança contra um grupo profissional inteiro -, a humilhação lançada sobre os docentes é um dos principais sintomas da sociedade doente em que habitamos (como escreveu um dia Agostinho da Silva), a qual combate todos os dias aqueles (professores, artistas, escritores, pensadores livres...) que ainda conseguem estimular a liberdade entre os seres humanos e/ou denunciam os lobos vestidos de cordeiros que apenas querem destruí-la.
Por isto e por muito mais, faço greve amanhã. Não sou grande adepto desta forma de luta, mas tem mesmo que ser, mesmo que me saia do bolso! Mais do que nunca, demitir-me neste momento seria compactuar com quem nos deseja humilhar, porque só assim consegue governar em verdadeiro absolutismo.
Nunca, como agora, senti tanta vontade de mudar de profissão. Se algum dia conseguir dar o salto, sentirei falta apenas dos alunos (mesmo dos mais difíceis), pois com eles tenho passado as melhores horas destes doze anos de docência.
Cada vez mais me custa aguentar os ataques de que os professores são alvo todos os dias e as mentiras que, sobre nós e sobre a nossa carreira, circulam um pouco por todo o lado. Consagrada na legislação - como desejam a ministra, os secretários de estado, o primeiro-ministro e mais alguns cidadãos mergulhados em espírito de inconfessável vingança contra um grupo profissional inteiro -, a humilhação lançada sobre os docentes é um dos principais sintomas da sociedade doente em que habitamos (como escreveu um dia Agostinho da Silva), a qual combate todos os dias aqueles (professores, artistas, escritores, pensadores livres...) que ainda conseguem estimular a liberdade entre os seres humanos e/ou denunciam os lobos vestidos de cordeiros que apenas querem destruí-la.
Por isto e por muito mais, faço greve amanhã. Não sou grande adepto desta forma de luta, mas tem mesmo que ser, mesmo que me saia do bolso! Mais do que nunca, demitir-me neste momento seria compactuar com quem nos deseja humilhar, porque só assim consegue governar em verdadeiro absolutismo.
JOSÉ DO CARMO FRANCISCO
O tempo das antigas emoções
Hoje folheei um livro de Marina Tavares Dias cujo título é Sporting Clube de Portugal – Uma história diferente. O facto de folhear o volume, página a página, fotografia a fotografia, leva-me a pensar como deve ter sido difícil fazer um trabalho de 320 páginas contando hoje a história de um Clube fundado em 1906. No passado, no passado de todos nós, havia poucas fotografias. Quem tirava retratos era quase sempre em ocasiões especiais. Ia-se ao retratista que tinha um estúdio decorado com motivos próprios para cada idade: crianças, adolescentes, militares, noivos, bodas de ouro. Havia menos fotografias mas havia mais emoções. Viajava-se menos mas liam-se muitos livros de viagens.
Aqui há tempo soube de uma história deliciosa passada nos anos quarenta com o escritor Dinis Machado e o seu pai, o jornalista Oliveira Machado. O pai levou o filho à Rua Jardim do Regedor para lhe mostrar a Sala de Troféus do Benfica. Pensava o dito senhor que a criança, depois de ter levado um banho de taças, troféus e medalhas, acabaria por se render ao Benfica, mas não. Questionado pelo pai, o jovem Dinis Machado afirmou com toda a força da simplicidade: «Pai, sou do Sporting porque apertei a mão ao Jesus Correia!» Era a força das emoções e o pai do jovem Dinis, apesar da sua força de pai e de ser o dono do restaurante «Farta Brutos», nada conseguiu do filho que já estava desde pequenino vacinado para ser um grande sportinguista. Hoje os miúdos têm tudo desde as play station a toda a espécie de brinquedos. Os miúdos do passado tinham a força das antigas emoções, as chamadas emoções para toda a vida. E para além da vida. Jesus Correia já morreu mas Dinis Machado continua a ser «leão».
LI E CONCORDEI COM...
FERNANDO SAVATER
“[...] Os medievais falaram com razão de dois tipos de liberdade política: a libertas a coacione, que nos emancipa da tirania que impede participar igualitariamente na gestão da coisa pública, e a libertas a miseria, que salva das imposições infligidas pela falta de recursos no mundo do ‘tanto tens, tanto vales’. Em demasiadas ocasiões, é a miséria (económica ou cultural) que condiciona inevitavelmente a submissão de muitos a tiranias ‘democráticas’ impostas pelos beati possidentes. Hoje em dia, provavelmente as maiores diferenças entre os livres de facto e os livres só de nome são estabelecidas pelo acesso à informação: para ser livre é preciso ‘saber’ mais do que aqueles que não o são e controlar os meios de ‘comunicação’ para difundir tanto o conhecimento como as falsificações interesseiras que geralmente ocupam o seu lugar...”
(in A Coragem de Escolher, 2003)
FERNANDO SAVATER
“[...] Os medievais falaram com razão de dois tipos de liberdade política: a libertas a coacione, que nos emancipa da tirania que impede participar igualitariamente na gestão da coisa pública, e a libertas a miseria, que salva das imposições infligidas pela falta de recursos no mundo do ‘tanto tens, tanto vales’. Em demasiadas ocasiões, é a miséria (económica ou cultural) que condiciona inevitavelmente a submissão de muitos a tiranias ‘democráticas’ impostas pelos beati possidentes. Hoje em dia, provavelmente as maiores diferenças entre os livres de facto e os livres só de nome são estabelecidas pelo acesso à informação: para ser livre é preciso ‘saber’ mais do que aqueles que não o são e controlar os meios de ‘comunicação’ para difundir tanto o conhecimento como as falsificações interesseiras que geralmente ocupam o seu lugar...”
(in A Coragem de Escolher, 2003)
LIBERDADE E DIGNIDADE
A liberdade (que a tantos provoca engulhos), emanação do livre arbítrio, mantém uma relação interdependente com a responsabilidade. Desresponsabilizar – desculpabilizando o erro, o pecado ou a monstruosidade, como é moda relativista, psicologista, multicultural e/ou pós-moderna do nosso tempo – é mutilar a liberdade do ser humano, eliminando lentamente a sua dignidade enquanto indivíduo.
A liberdade (que a tantos provoca engulhos), emanação do livre arbítrio, mantém uma relação interdependente com a responsabilidade. Desresponsabilizar – desculpabilizando o erro, o pecado ou a monstruosidade, como é moda relativista, psicologista, multicultural e/ou pós-moderna do nosso tempo – é mutilar a liberdade do ser humano, eliminando lentamente a sua dignidade enquanto indivíduo.
LI E CONCORDEI COM...
RODRIGO DE LIMA
“Portugal é como a igreja de São Torcato em Guimarães. Com fachada de forte granito, está rachada de alto a baixo. Ameaça ruína desde a fundação, mas não há sismo que a faça cair. Entretanto, lá dentro, vai-se venerando um cadáver mumificado com identidade muito duvidosa.”
(in Diário Inacabado, 1983)
JOSÉ TOLENTINO MENDONÇA
O grito
A beleza nunca é clara
no modo em que se aproxima
Somos com certas coisas
um mundo ainda terrível
incapaz de explicações
sem nenhuma das certezas
mesmo aquelas, ínfimas, que sustentam
uma palavra, um olhar ou um grito
Só nos resta a maneira
mais pura:
de igual para igual
tão desconhecidos
O poema
O poema é um exercício de dissidência, uma profissão de incredulidade na omnipotência do visível, do estável, do apreendido. O poema é uma forma de apostasia. Não há poema verdadeiro que não torne o sujeito um foragido. O poema obriga a pernoitar na solidão dos bosques, em campos nevados, por orlas intactas. Que outra verdade existe no mundo para lá daquela que não pertence a este mundo? O poema não busca o inexprimível: não há piedoso que, na agitação da sua piedade, não o procure. O poema devolve o inexprimível. O poema não alcança aquela pureza que fascina o mundo. O poema abraça precisamente aquela impureza que o mundo repudia.
(Poemas retirados de A Noite Abre Meus Olhos, recentemente editado pela Assírio & Alvim, onde o autor reuniu a sua poesia até agora publicada.)
DEPOIS DE HOSPITAL ROUBADO...
... trancas na porta. Depois de tanta cobardia perante o regime estalinista norte-coreano, a bomba nuclear era inevitável. Agora não há remédio. Quer queiramos quer não, mais tarde ou mais cedo acontecerá o mesmo com o Irão. A cobardia tem sido idêntica. Afinal são muito parecidos: qual a diferença entre o ateísmo assassino e a pseudo-religiosidade terrorista? E não venham os detergentes do costume tentar lavar a atitude destes países. Quando as bombas estoirarem, infelizmente, todos seremos vítimas.
... trancas na porta. Depois de tanta cobardia perante o regime estalinista norte-coreano, a bomba nuclear era inevitável. Agora não há remédio. Quer queiramos quer não, mais tarde ou mais cedo acontecerá o mesmo com o Irão. A cobardia tem sido idêntica. Afinal são muito parecidos: qual a diferença entre o ateísmo assassino e a pseudo-religiosidade terrorista? E não venham os detergentes do costume tentar lavar a atitude destes países. Quando as bombas estoirarem, infelizmente, todos seremos vítimas.
JOSÉ DO CARMO FRANCISCO
O pão de São Roque
O meu fim-de-semana foi muito especial.
Na sexta-feira à noite ouvi desabafos de uma empregada de consultório a propósito da maldade das pessoas. Desde as velhas que, tendo consulta às 7 da tarde aparecem às 4 e meia, até ao caso mais grave de um grupo que se insurgiu contra o facto de a médica de cardiologia ter parado tudo quando soube que uma senhora na consulta de oftalmologia estava a começar a fazer um enfarte. As outras começaram a protestar porque não havia direito de uma pessoa passar à frente da sua vez.
No sábado à noite fui ao jantar de aniversário de um grande amigo da vida militar. Pois eu, entre a estação de comboios de Santa Apolónia e o rio Tejo, tive dificuldades em acertar com o restaurante que tem a fama e o proveito de ser um dos melhores do País e da Europa. Dois maloios, dois vacões, dois bardinos que estavam a receber víveres num restaurante mesmo ao lado disseram-me que não sabiam onde era esse tal restaurante famoso em todo o País e em toda a Europa. Fiquei revoltado sobretudo porque além de demonstrarem falta de categoria como empregados de um pequeno e vulgar restaurante não perceberam que eu, quando ando à procura de um restaurante excepcional, não vou desistir de o encontrar só porque dois bardinos, dois vacões e dois maloios fingem que não sabem.
No domingo recebi o pão de São Roque na missa da manhã na Igreja de São Roque. Percebi melhor a dimensão do santo que era sobrinho do presidente da Câmara de Montpellier e partiu da sua cidade para ajudar os pobres dando-lhes pão. Os pobres de espírito do consultório e do pequeno restaurante entre Santa Apolónia e o Tejo, esses já não há São Roque que lhes possa valer.
LI E CONCORDEI COM…
JEAN-LUC NANCY
“A maldade não odeia tanto esta ou aquela singularidade: odeia a singularidade como tal e a relação singular das singularidades. Odeia a liberdade, a igualdade e a fraternidade, odeia a partilha, odeia partilhar.
E este ódio é o da própria liberdade (é também, pois, o ódio das próprias igualdade e fraternidade; odeia-se a partilha e fica-se próximo da ruína). Não é um ódio de si mesmo, como se a liberdade já estivesse aí e pudesse chegar a detestar-se, no entanto, é o ódio do ‘si mesmo’ singular, o que é a existência da liberdade e a liberdade da existência. O mal é o ódio da existência como tal. […] Mas neste sentido, o mal está no existente como a sua possibilidade mais própria de recusa da existência.”
(in A Experiência da Liberdade, 1996, cit. por Fernando Savater no seu livro A Coragem de Escolher, 2003)
JEAN-LUC NANCY
“A maldade não odeia tanto esta ou aquela singularidade: odeia a singularidade como tal e a relação singular das singularidades. Odeia a liberdade, a igualdade e a fraternidade, odeia a partilha, odeia partilhar.
E este ódio é o da própria liberdade (é também, pois, o ódio das próprias igualdade e fraternidade; odeia-se a partilha e fica-se próximo da ruína). Não é um ódio de si mesmo, como se a liberdade já estivesse aí e pudesse chegar a detestar-se, no entanto, é o ódio do ‘si mesmo’ singular, o que é a existência da liberdade e a liberdade da existência. O mal é o ódio da existência como tal. […] Mas neste sentido, o mal está no existente como a sua possibilidade mais própria de recusa da existência.”
(in A Experiência da Liberdade, 1996, cit. por Fernando Savater no seu livro A Coragem de Escolher, 2003)
VALE DOS HOMENS
António Pedro,
meu avô
desapareceu a partir dessa janela.
a pele liquefez-se. a voz procurou
água que conseguisse desenhar
as ervas, o arco que divide o mundo.
o olhar perde-se por entre as árvores.
vaza a vista, a cor da madeira, o cabelo
que semeaste na escada.
distante a horta, o poço, o canto do lume.
o vento grava neste porto
a navalha que nos corta as veias.
subia procurando um rosto,
um dedo apenas, os frutos desta
e de outra terra.
desapareceram a partir desta janela
a pele, a voz, o olhar, a cor, a manhã.
o elevador pára. perde-se
neste porto
a alegria da viagem
(sem retorno).
António Pedro,
meu avô
desapareceu a partir dessa janela.
a pele liquefez-se. a voz procurou
água que conseguisse desenhar
as ervas, o arco que divide o mundo.
o olhar perde-se por entre as árvores.
vaza a vista, a cor da madeira, o cabelo
que semeaste na escada.
distante a horta, o poço, o canto do lume.
o vento grava neste porto
a navalha que nos corta as veias.
subia procurando um rosto,
um dedo apenas, os frutos desta
e de outra terra.
desapareceram a partir desta janela
a pele, a voz, o olhar, a cor, a manhã.
o elevador pára. perde-se
neste porto
a alegria da viagem
(sem retorno).
AVALIAÇÃO E IMOBILISMO
Não me oponho a um maior rigor na avaliação dos professores de todos os níveis de ensino, desde que este corresponda a um olhar justo sobre os docentes. Exames nacionais no ingresso e um maior peso do currículo e do mérito na progressão são mesmo necessários.
Não posso aceitar, no entanto, um sistema que penalize os profissionais do ensino por usufruirem de um direito legal (a falta justificada), sobretudo quando os gerentes do Ministério da Educação não parecem estar interessados na criação de mecanismos legislativos que permitam a troca de aulas e a reposição das mesmas em qualquer momento do ano lectivo.
Aceito ainda menos que, nos Ensinos Básico e Secundário, se institua uma promoção idêntica à do Ensino Superior, que tantos malefícios tem causado na qualidade do mesmo, como recentemente provou um estudo internacional independente. O sistema piramidal - escolhido pela tutela de Maria de Lurdes Rodrigues porque levará a grandes poupanças financeiras - causará nas escolas apenas um grande imobilismo e, consequentemente, uma crescente falta de empenho entre os docentes, impedidos de progredirem porque os lugares cimeiros estão ocupados por colegas mais velhos (o que não significa "mais competentes").
Não me oponho a um maior rigor na avaliação dos professores de todos os níveis de ensino, desde que este corresponda a um olhar justo sobre os docentes. Exames nacionais no ingresso e um maior peso do currículo e do mérito na progressão são mesmo necessários.
Não posso aceitar, no entanto, um sistema que penalize os profissionais do ensino por usufruirem de um direito legal (a falta justificada), sobretudo quando os gerentes do Ministério da Educação não parecem estar interessados na criação de mecanismos legislativos que permitam a troca de aulas e a reposição das mesmas em qualquer momento do ano lectivo.
Aceito ainda menos que, nos Ensinos Básico e Secundário, se institua uma promoção idêntica à do Ensino Superior, que tantos malefícios tem causado na qualidade do mesmo, como recentemente provou um estudo internacional independente. O sistema piramidal - escolhido pela tutela de Maria de Lurdes Rodrigues porque levará a grandes poupanças financeiras - causará nas escolas apenas um grande imobilismo e, consequentemente, uma crescente falta de empenho entre os docentes, impedidos de progredirem porque os lugares cimeiros estão ocupados por colegas mais velhos (o que não significa "mais competentes").
Luís Veiga Leitão
– Uma memória feliz
em algumas histórias exemplares
De Luís Veiga Leitão guardo diversas memórias, todas felizes. Comecei por ter o gosto de incluir um poema seu no livro O Trabalho – Antologia Poética que organizei com Joaquim Pessoa e Armando Cerqueira para o Sindicato dos Bancários do Sul e Ilhas. Mais tarde encontrámo-nos em Vila Viçosa num encontro poético promovido por Orlando Neves e no qual participavam (entre outros) Mendes de Carvalho, Raul de Carvalho e Manuel Lopes. Num divertido almoço com um grupo de senhoras que gravitavam à volta dos poetas e queriam entrar no Círculo da Poesia Portuguesa, uma das senhoras dirigiu-se a Luís Veiga Leitão (que ostentava o seu nome na camisa e era de longe o poeta mais bonito do nosso grupo) perguntando com alguma ingenuidade: «O senhor fez parte do processo dos 254 e esteve preso em Caxias, não esteve?» A resposta do nosso poeta foi de um fino humor que arrasou por completo a senhora: «Não minha senhora! Eu sou muito mais antigo. Eu estive preso mas em São Julião da Barra!» A senhora em vez de sorrir com a piada que colocava Luís Veiga Leitão ao lado de Gomes Freire de Andrade no século XIX, respondeu apenas: «Desculpe!»
Uma vez pedi-lhe um depoimento sobre o poeta Daniel Filipe e ele escreveu um texto enxuto e sem emendas, um texto manuscrito entenda-se. Saiu numa edição especial do jornal Poetas e Trovadores que dirigi com Joaquim Pessoa e Travanca-Rêgo em 1982 e 1983. Ainda hoje guardo esse belo depoimento sobre Daniel Filipe – um poeta quase esquecido e que é também um brilhante cronista.
Luís Veiga Leitão distinguia os amigos com cartas escritas à mão num modelo com um pastor a tocar flauta. Uma das suas cartas foi por mim oferecida para um leilão a favor da Associação Portuguesa de Escritores e foi arrematada no Fórum Picoas pelo galerista que era proprietário da Galeria 111 no Campo Grande.
Uma última história que recordo com ternura: o desabafo que teve para comigo em Moimenta da Beira depois de uma homenagem da Câmara Municipal que colocou uma placa na casa onde o poeta nasceu: «Não se sabe. Não se sabe. A minha tia tem a ideia de que foi ali mas isso também não interessa muito.» E é verdade. O que interessa é que foi em Moimenta que nasceu o poeta Luís Veiga Leitão, um grande poeta português do século XX e de sempre. Uma das vozes mais puras e genuínas da nossa tradição lírica.
Isto, já agora, se eu não estou em erro...
JOSÉ DO CARMO FRANCISCO
NICOLAU SAIÃO
Em louvor dos Palhaços
Não por simbolismo mais ou menos evidente, não por se estar em tempo de clowns, de malabaristas, de hipnotizadores e de ilusionistas – mas sim por no Outono a memória parecer mais nostálgica, intercedendo pelos tempos de grandes alegrias, de viagens interiores, de meandros que se acariciam com a palavra, com a recordação. Um mundo juvenil de circo, fremente e encantado.
Charlie Rivel, que vi ao vivo em Madrid numa tarde de surpresas, no decorrer duma matinée inesquecível, com o seu lentíssimo andar, com as suas pequenas frases entrecortadas, com o seu huuuuuu! de rosto rodando para o céu, esse som surpreendente pontuando as estórinhas comoventes, terríveis e poéticas daquele que foi considerado o melhor palhaço do mundo.
E os Irmãos Campos, portugueses retintos num elenco circense todo composto por húngaros de Linda-a-Pastora, por franceses do Cadaval, por italianos da Madragoa? E Oscarito, o palhaço bailarino com as pernas de arame que todo se desconjuntava quando Simeão, o palhaço-rico, o submetia a rudes diálogos de que aliás saía mal-ferido? E que com o seu serrote-violino, com a sua trompete destravada, com o seu saxofone bicéfalo nos levava por todos os lugares onde o sonho podia acontecer?
E – posto que agora por fora – as distintas partenaires que eram jovens em início de carreira ou madames a finalizá-la, mas inteiramente frequentáveis para olhos adolescentes (um toquezinho de inusitado que ainda lhes conferia mais sedução…)?
Deixem que me lembre desses anos de vinho e rosas… Em Portalegre por todo o Rossio, em frente do antigo campo da bola, por detrás da belíssima cascata do jardim barroco infelizmente passado à estória da História, quando ainda lá havia uma esplanada de Café sob um cedro do Líbano, onde pelas tardes a rapaziada hoje madura ia deslumbrar-se nos serões de província…
Deixem que me recorde - como se, com vossa licença, tasquinhasse expeditamente um pacote de amendoins, antes de entrarem os domadores, os imitadores, os trapezistas e outros acrobatas.
JOSÉ DO CARMO FRANCISCO
As flores estão sempre frescas
As recentes antevisões e notícias da aproximação de furacões e de tempestades tropicais perto das diversas ilhas dos Açores trouxeram-me a memória de uma outra tempestade mas esta no Rio Tamisa. Foi no dia 20 de Agosto de 1989 que o navio Marchioness naufragou no rio que atravessa Londres muito perto da catedral de Southark. Nesse terrível desastre perderam a vida dois portugueses – António Vasconcelos e Domingos Vasconcelos. O primeiro tinha 26 e o segundo 28 anos de idade. Claro que nada acontece por acaso e eu descobri esta tragédia que me comoveu pela simples razão de que a minha filha mais velha viveu alguns anos no bairro de Southark. Nada me liga a essas pessoas que perderam a vida no seu ponto talvez mais esperançoso e bonito – o caminho da maturidade. Em termos mais ou menos simples são estes os quatro primeiros estádios da nossa vida. Os sete anos marcam a saída da primeira infância, os catorze a entrada na adolescência, os vinte e um a entrada na idade adulta e os vinte e oito a chegada à maturidade. Nada me liga de modo directo mas tudo afinal me sugere uma aproximação. Porque todos falamos português, porque somos todos membros da família da humanidade. Quem sabe se eles não eram açorianos; há muitos Vasconcelos nos Açores.
Resolvi fazer as férias de 2006 na cidade de Londres. Foram vinte e quatro longos dias que me custaram os olhos da cara. Em Londres é tudo caro a começar pelos cafés. O ano de 1989 não foi assim há tanto tempo. Às vezes parece que foi ontem. No passado mês de Agosto lá estive na Catedral de Southark para lhes prestar a minha discreta homenagem. E uma vez mais reparei que as flores estão sempre frescas.
As flores estão sempre frescas
As recentes antevisões e notícias da aproximação de furacões e de tempestades tropicais perto das diversas ilhas dos Açores trouxeram-me a memória de uma outra tempestade mas esta no Rio Tamisa. Foi no dia 20 de Agosto de 1989 que o navio Marchioness naufragou no rio que atravessa Londres muito perto da catedral de Southark. Nesse terrível desastre perderam a vida dois portugueses – António Vasconcelos e Domingos Vasconcelos. O primeiro tinha 26 e o segundo 28 anos de idade. Claro que nada acontece por acaso e eu descobri esta tragédia que me comoveu pela simples razão de que a minha filha mais velha viveu alguns anos no bairro de Southark. Nada me liga a essas pessoas que perderam a vida no seu ponto talvez mais esperançoso e bonito – o caminho da maturidade. Em termos mais ou menos simples são estes os quatro primeiros estádios da nossa vida. Os sete anos marcam a saída da primeira infância, os catorze a entrada na adolescência, os vinte e um a entrada na idade adulta e os vinte e oito a chegada à maturidade. Nada me liga de modo directo mas tudo afinal me sugere uma aproximação. Porque todos falamos português, porque somos todos membros da família da humanidade. Quem sabe se eles não eram açorianos; há muitos Vasconcelos nos Açores.
Resolvi fazer as férias de 2006 na cidade de Londres. Foram vinte e quatro longos dias que me custaram os olhos da cara. Em Londres é tudo caro a começar pelos cafés. O ano de 1989 não foi assim há tanto tempo. Às vezes parece que foi ontem. No passado mês de Agosto lá estive na Catedral de Southark para lhes prestar a minha discreta homenagem. E uma vez mais reparei que as flores estão sempre frescas.
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